terça-feira, 27 de setembro de 2022

O AZAR DOS ITALIANOS


No dia 7 de Janeiro de 1932 um avião Breda 33 Ilare voava sobre Lisboa pilotado pelo "ás" italiano Geremia Meleri que levava consigo o mecânico Ferrari. Com um nome daqueles a dar assistência técnica era impossível o motor falhar.
A verdade é que falhou nas piores condições imagináveis. Falhou sobre Lisboa, a única capital europeia que naquela época não tinha um aeródromo nem campos de aterragem dignos desse nome. Assim, o valente Geremia não teve alternativa senão tentar aterrar num terreno agrícola pertencente à Quinta dos Apóstolos, ali para os lados do Alto de São João. Parecia premonitório.
As coisas não correram nada bem. O Breda 33 bateu num muro de pedra que delimitava o terreno e capotou, ficando os tripulantes gravemente feridos e presos debaixo do aparelho. Receava-se o pior.
Acorreram dezenas (centenas?) de populares que logo rodearam os destroços e tentaram acudir aos infelizes. Alguém chamou os bombeiros, porque o caso parecia sério. Entretanto chegaram os agentes da autoridade com ordens para criar um perímetro de segurança e evitar o saque que se adivinhava.
Como os Bombeiros Voluntários da Ajuda tardavam a chegar, o mecânico Ferrari foi colocado num side car (cruzes, que péssima ideia!) dos Municipais e enviado para o Hospital de São José. O piloto Meleri foi de táxi. Sim, de táxi, estimado leitor.
À chegada a São José o mecânico já estava morto, esmagado pelos ferros do avião e confirmado cadáver pelo brutal transporte em side car. Geremia Meleri sobreviveu ao acidente e ao transporte de táxi mas chegou ao hospital em muito mau estado. Foi operado durante várias horas mas as esperanças eram poucas. Mais tarde o Ministro de Itália foi informado e tomou conta do caso. Presume-se que o piloto tenha sido repatriado, vivo ou morto.
E os Bombeiros da Ajuda? Como se receava acabaram por não aparecer. Porquê? Porque quando o pronto socorro se dirigia a toda a velocidade para o local do acidente o motorista, emocionado por ser chamado a intervir no seu primeiro acidente aéreo, perdeu o controle da viatura no Largo D. João da Câmara, entrou em derrapagem e bateu no passeio com violência. Resultado: uma roda partida, eixo danificado e impossibilidade total de prosseguir.
Era assim o Portugal dos anos 30.

terça-feira, 22 de junho de 2021

A MINI-SAIA DA PROFESSORA.


Em Agosto de 1967, em Luanda, uma professora era presa por andar de mini-saia
A Dona Sara Faustino, professora de profissão, descrita como senhora culta e casada, usa uma mini-saia. Um zeloso guarda, por considerar que a mini-saia está a provocar tumultos e a perturbar a ordem pública, prende-a, ficando a senhora a passar uma noite na cadeia.
Levada ao Juíz, que pareceu ser uma "pessoa bem divertida" e este depois de analisada a situação, declara :
"Mini -saia não é crime. Nestes termos absolvo-a e mando-a em paz".
Há 54 anos uma mulher com a sua mini-saia provocava um  alarido.
Dona Sara Faustino rompia barreiras e preconceitos, numa altura em que até na Metrópole era proibido falar em mini-saia. Antes dela não houve nenhuma. Foi uma heroína no seu tempo. Um tempo em que uma mulher de mini-saia ou a fumar em público era uma afronta, para não dizer os nomes feios que na altura lhes eram atribuídos. Ela foi uma "revú" do seu tempo. Com uma atitude ousada, sozinha ultrapassou barreiras e venceu preconceitos .
O feito inédito de Dona Sara Faustino mereceu reportagem do jornalista Jaime Saint Maurice, fotos de Eduardo Baião na revista Notícias de Agosto de 1967.

terça-feira, 5 de maio de 2020

"ALMOÇOS"


Visita Presidencial de Craveiro Lopes, 1954.
Já em escritos anteriores, fiz referencia à viagem do Presidente Craveiro Lopes, a Angola. Foram trinta e seis dias cansativos mas cheios de “casos e peripécias” dignos de serem recordados agora, a cinquenta e três anos de distância. 
Este título “Almoços” pode dar a ideia de que teríamos passado a vida à mesa. 
De facto, trinta e seis dias, implicariam 36 almoços. O que é quase verdade, mas o certo é que viagens houve em que o almoço foi substituído por longas e penosas horas de carro…e de “fome”...! 
Os almoços servidos nos “Grande Centros” não deixaram história, eram todos iguais, mais ou menos protocolares, os mesmos salamaleques, a mesma hipocrisia. 
Nas pequenas terras do interior, nessas sim, os almoços têm história. Muitos deles, separados uns dos outros por centenas de quilómetros, ou por vários dias, apresentavam-nos, com toda a gentileza aliás, uma ementa igual à da véspera: - croquetes, pastéis de bacalhau, de massa tenra carnes frias, frango assado, queijo, um, ou mais doces, enfim tudo o requerido por um “almoço volante”. Quanto a bebidas, sumos de frutos para o Presidente. Algumas garrafas de água mineral e, cerveja em abundância, e era com, ela que os convivas matavam a sede, daí a escassez de água propriamente dita. 
Acabado o almoço, ouvidos os mesmos discursos do anterior, partamos ao encontro dos seus irmãos gémeos. A comitiva era grande, e acrescida da gente da terra, não havia sala que a abrigasse. 
Era então que se dava verdadeiro valor à generosa Natureza. Aproveitando a sombra de uma frondosa árvore, improvisavam um verdadeiro banquete de rissóis, pasteis de bacalhau, massa tenra, frango e…cerveja, nada que não tivéssemos degustado já por mais de uma vez. 
As Senhoras – mulheres dos “forças vivas ”locais" que se tinham dedicado talvez toda a noite à culinária, multiplicavam-se agora na disposição da comprida, mesa onde um “Almoço Volante” esperaria por Sua Excelência e acompanhantes que deveriam chegar à hora protocolar. Deveriam, mas milagre seria se o protocolo se cumprisse. Prudentes e ingénuas as pobres Senhoras, na previsão de que o Presidente chegasse mais cedo do que o esperado, providenciaram para que tudo estivesse pronto com antecedência. Assim, tudo foi armado à sombra de uma frondosa árvore onde uma enorme mesa coberta de iguarias: rissóis, pasteis de massa tenra, de bacalhau, carnes frias, frango assado, doces vários, frutos e…cerveja. 
Tudo teria oferecido um atraente e delicioso espectáculo…DUAS HORAS antes. Porém a comitiva, como sempre, atrasou-se e a sombra fresca e protectora, da frondosa árvore, foi fugindo indiferente ao sofrimento das chorosas Senhoras. Tudo estava ressequido, rijo, e até a cerveja estava morna quando chegámos e as chorosas Senhoras nos encheram de pedidos de desculpas. Mas a fome que trazíamos acabou por nos levar a fazer as honras à Cerveja morna e aos pasteis secos que de certa maneira ajudaram a secar os lacrimosos olhos femininos. Quanto a bebidas, para além dos sumos para o Presidente (julgo que trazidos pelo Mordomo da Presidência), e de algumas garrafas de água mineral, em matéria hídrica apenas cerveja, tinham cuidado pouco da água propriamente dita. 
Para mim, esta falta foi dramática. 
Como repórter cinematográfico, transportando uma câmara que àquela hora já pesava bem mais do que os seis quilos originais, não podia, como aliás todos os meus camaradas da Imagem, não podíamos comer muito para nos podermos movimentar com facilidade. 
No meu caso estava fora de questão qualquer bebida alcoólica durante o trabalho, a bem da firmeza de mãos…e da câmara, por isso não bebia, e não comia para não ter sede.
Cazombo

Era a segunda vez que me deslocava a Cazombo, onde estivera a filmar a Leprosaria.
Nesta altura o meu desespero era grande, e mal pude dar por finda a reportagem, larguei a correr estrada abaixo a caminho do avião que estava longe mas onde havia água fresca.
Quando atravessava a Povoação onde tudo estava fechado, reparei numa casa com a porta semi-aberta, e de onde vinha um som de festa. Não pensei duas vezes. Empurrei a porta e entrei.
Era uma loja, e lá ao fundo, para lá do balcão, uma mesa com comida e gente ruidosa em volta..
-“Boa tarde, por favor dêem-me um copo de água, estou morto de sede”
-"Olá, então por cá outra vez ?”
Reconhecera-me pela câmara, certamente...
Levantara-se um homem, que veio cumprimentar-me.
Com uns restos de humidade que ainda conservava na boca, consegui articular: “por favor, um copinho de água”?
“Qual água! Qual nada!”, o Amigo vai é beber uma cervejinha aqui com a gente”.
“Não. Não. Por favor, prefiro água “.
Mas aquela gentileza de pessoa, virou-se encaminhando-se para a geleira repetindo:“qual água, uma cervejinha é que é”.
E eu, junto ao balcão, com a voz suplicante de um ser perdido no deserto: “Água! Por favor Água”!
Então, vendo que o homem não desistia. Já abria a geleira, virei as costas, saí porta fora e corri desesperadamente até ao avião que ficava longe, mas tinha água fresca.
Mais tarde, já “após água”, pus-me a pensar nos comentários que o homem - que tão gentil quisera ser, teria feito sobre a minha inexplicável grosseria.
Por mim, penso que a minha pobre Mãe, se os tivesse ouvido, não teria gostado.
Os deuses protegeram-me .
Nunca mais tive de ir a Cazombo.

João Silva
Rxa Xenaider

terça-feira, 22 de outubro de 2019

MOXICO: UMA TERRA RICA COM UMA POPULAÇÃO POBRE


Passei os últimos dias na Província do Moxico, no quadro de um megaprojecto de investigação científica (a ser desenvolvido por uma equipa de 37 investigadores e cientistas sociais angolanos e estrangeiros, de que faço parte) que abrange o território compreendido pelas províncias do Kwanza Sul, Benguela, Namibe, Huíla, Huambo, Bié e Moxico (incluindo o Oeste da Zâmbia).

Mas no presente texto, à maneira de crónica, centrarei minhas atenções àquela que é a maior província de Angola.

Moxico (com 223 023 quilómetros quadrados) é tão grande em extensão, que a Bélgica, a Holanda, o Luxemburgo e a Inglaterra caberiam na província e ainda sobrariam 20 986 quilómetros quadrados de espaço. Atravessar em linha recta a província, do Oeste para o Leste, de carro, a 120 Km/h, sem pausa, levaria cerca 12 horas.

Mas não é apenas a sua extensão que é impressionante. Moxico também possui uma elevada quantidade de recursos naturais, tais como carvão, cobre, manganês, ferro, diamantes, ouro, volfrâmio, estanho, molibdénio, urânio, lenhite e madeira. O solo da província é rico e produz bens essenciais como massango, batata-doce, girassol, vielo, arroz, mandioca e milho.
Um outro recurso que abunda da gigantesca província é o mel. Mel de alta qualidade, aliás.
O estratégico Caminho de Ferro de Benguela passa praticamente a meio da província e faz ligação com a Zâmbia e outros países.
As duas grandes zonas industriais do Moxico localizam -se nos municípios do Moxico e do Luau.

Percorri a pé Luena de Leste a Oeste e de Norte a Sul. A última vez que eu estivera na cidade foi em Maio de 2007. Passados 12 anos, já não encontrei a cidade-fantasma onde localizar um hotel ou hospedaria era como localizar o Palácio do Conde Drácula. Em todo o caso, o número de hotéis ainda não está à altura das demandas.
Luena é uma cidade limpa, organizada e tranquila. O trânsito é ordeiro. Há sinais de obras de raiz, de reconstrução e de requalificação em diversos pontos da mesma. Mas não tem sinais de trânsito electrónicos, os quais existem no Kuito e funcionam dia e noite.

A Praça da Paz consiste num complexo ecoturístico e cultural cujo elemento principal é o Monumento da Paz, erigido para homenagear a paz, os esforços dos Angolanos em busca dela e, é claro, a assinatura dos Acordos de Luena. Moxico é a província onde foram desenvolvidas duas das grandes guerrilhas da Luta de Libertação Nacional, levadas a cabo pelo MPLA e pela UNITA. A famosa Frente Leste. Moxico é onde Jonas Savimbi começou e concluiu o seu intrigante e circular percurso guerrilheiro.
A Praça da Paz possui uma biblioteca, uma mediateca móvel e uma espécie de jardim botânico, cujas árvores possuem placas de identificação científica, informando os visitantes sobre o nome científico de cada árvore, o nome local, a sua espécie etc. Mas a sua piscina não funciona. Por outro lado, existe uma lixeira ao lado da mediateca.

Visitei Lucusse. Observei os anais do mítico Rio Lungue-Bungo. Visitei também a Comuna de Calunda (no Alto Zambeze), onde jazem os restos mortais de incontáveis vítimas dos trágicos acontecimentos de 27 de Maio de 1977, detidos e presos em Luanda e levados para lá, onde passaram fome, sede, foram torturados e apoquentados por diversas doenças. A vasta maioria não regressou. Morreu lá.

Entretanto, ao viajar pelos extensos municípios da província do Moxico, constatei, mais uma vez, as grandes diferenças entre Luena, as sedes municipais e o interior (de cada município): a pobreza agreste e a miséria inenarrável de uma população que merece ter uma qualidade de vida condicente com as enormes quantidades de riqueza natural existentes na sua província.
O Bairro Zorró e o Bairro 4 de Fevereiro são exemplos de assentamentos humanos cujas condições de vida dão a entender que os moxiquenses são donos de uma terra que só tem areia e umas lagoas.
A realidade socioeconómica da população do Moxico é trágica, porquanto apenas uma pequena fracção da sua população vive de forma decente.
A pobreza agreste fica evidente nas crianças que passam o dia a vender carne, bebidas, frutas e outros produtos. Essas crianças não frequentam a escola. Na verdade, muitas simplesmente desistiram da escola por força da necessidade de ajudarem os pais a sustentar a família.

De facto, Moxico é uma terra rica com uma população pobre, vítima da má governação, do saque do erário, do cabritismo, dos nepotismos, filhotismos, sogrismos e outros males levados a cabo e consolidados durante os (in)esquecíveis quase 30 anos de João Ernesto dos Santos, ele que geriu a província como se fosse sua propriedade.
Uma análise ao OGE 2019 demonstra que Moxico continua longe de receber a fatia orçamental à altura das suas necessidades e dos seus desafios de crescimento e desenvolvimento.
Quanto ao novo governador, Gonçalves Muandumba, é evidente que a sua gestão, apesar dos esforços, é limitada por uma série de obstáculos e constrangimentos que decorrem do anacrónico regime de gestão administrativa do MPLA, que, na prática, é ineficiente e, como tal, ineficaz.
O governador considera de forma inequívoca que a sua gestão é afectada pela escassez ou insuficiência de recursos naquela que é a maior província de Angola. Obviamente, a sua gestão em si deve ser também questionada.
Quanto à juventude, preocupa -me que seja, na sua maioria, amorfa e tenha uma visão ingénua da governação. Os jovens são acríticos e possuem uma visão muito estreita do que é cidadania e qualidade de vida.

Independentemente disto, a população do Moxico tem direito ao desenvolvimento e à qualidade de vida.


Nuno Álvaro Dala
24 de Setembro de 2019

terça-feira, 8 de outubro de 2019

QUANDO ME TORNEI INVISÍVEL!...



Já não sei em que datas estamos!...
                                                ENVELHECER É PURA POESIA.
                                            Até o sorriso fica entre aspas!...


Nesta casa não há folhinhas, e na minha memória tudo está revolto!... 
As coisas antigas vão desaparecendo e, eu, apago-me sem que ninguém dê conta. 
Quando a família cresceu, trocaram-me de quarto. Depois, passaram-me para outro menor ainda acompanhada das minhas netas. Agora, ocupo o anexo…no quintal traseiro. 
Prometeram-me mudar o vidro partido da janela, mas esqueceram-se. E nas noites…que por ali sopra um ventinho gelado, aumentam mais as minhas dores reumáticas. 
Um dia, à tarde, dei conta que a minha voz desapareceu. Quando falo, os meus filhos e netos não me respondem. Conversam sem olhar para mim, como se eu não estivesse com eles. 
Às vezes digo algo, acreditando que apreciarão os meus conselhos, mas não me olham, nem me respondem. Então, retiro-me para o meu canto, antes de terminar a caneca de café. Faço isso para que compreendam que estou triste e para que me venham procurar e me peçam perdão…mas ninguém vem! 
No dia seguinte disse-lhes: Quando eu morrer, então sim vocês irão sentir a minha falta. E meu neto perguntou: Estás viva avó? (rindo). 
Estive três dias a chorar no meu quarto, até que numa certa manhã, um dos netos entrou para guardar umas coisas velhas. Nem bom dia me deu, e foi então que me convenci de que sou invisível. 
Uma vez os netos vieram dizer-me que iríamos passear pelo campo. Fiquei muito feliz porque, fazia tanto tempo que não saía! 
Fui a primeira a levantar-me, quis arrumar as coisas com calma, porque afinal, nós velhos, somos mais lentos. Assim, arranjei-me a tempo de não me atrasar. Em pouco tempo, todos entravam e saíam correndo pela casa, atirando bolas e brinquedos para o carro. 
Eu já estava pronta e muito alegre. Parei na porta e fiquei à espera. 
Quando se foram embora, compreendi que eu não estava convidada, talvez porque não cabia no carro. Senti que o coração encolhia e o queixo tremia, como alguém que tivesse vontade de chorar. Entendo-os…são jovens, riem, sonham, abraçam-se, beijam-se e, eu, e…eu! 
Antes beijava os meus netos, adorava tê-los nos braços como se fossem meus. E até cantava canções de embalar que tinha esquecido. Mas um dia… 
Um dia a minha neta que acabava de ter um bebé me disse que não era bom que os velhos beijassem os bebés por questões de saúde. Desde então não me aproximo mais deles, tenho tanto medo de contagiá-los! Não tenho mágoa por eles, perdoo a todos porque, que culpa têm eles que eu me tenha tornado invisível? 

Notas: Texto composto por Sílvia Castillejon Peral e alterado por mim em certas frases e imagens. 

Vítor Oliveira

sábado, 17 de agosto de 2019

O ELEFANTE REPARTIDO


O jornalista Emílio Filipe, o fotógrafo Raul Moreira e eu andámos cerca de dois meses num Land-Rover pela Região do Cuando Cubango colhendo material sobre variados aspectos daquela zona; etnográficos, paisagísticos, cinegéticos, etc.. 
Muitas vezes dormíamos mesmo no carro ou montávamos tenda, Fomos mesmo integrados numa operação militar à Região do Luíana (disso falarei mais tarde). Na ocasião estávamos aboletados numa Coutada de caça e já tínhamos feito vários contactos com uma tribo de "Buchímanes" de que falarei noutra ocasião. 
Depois de termos conseguido filmar em boas condições antílopes, avestruzes, búfalos e mesmo um rinoceronte, não tínhamos visto elefantes em condições filmáveis. 
Entretanto chegaram dois turistas americanos vindos directamente de avião da África do Sul, (nem passavam por Luanda). Também procuravam elefantes dos quais só queriam levar uma pata, para cada um e uns bocados de pele para fazer carteiras. Também tiveram dificuldades. Mesmo uma vez em que estivemos mais perto, como junto deles estava um rinoceronte – que ouve muito melhor que o elefante – este fugiu e os elefantes seguiram-lhes o exemplo. 
Numa madrugada em que não seguimos com os americanos fomos dar com uma "libata" de "ganguelas" - povo daquela região – que estava a fabricar uma espécie de cerveja de "massambala" uma gramínia muito vulgar. É curioso que esta "cerveja" chama-se "makau" (cheirava mesmo a cerveja e foi isso que nos chamou a atenção) Pedimos ao Sóba, que ali é também o feiticeiro, que nos deixasse filmar aquela operação, ao que ele não se opôs. Posto isto pedimos que fizesse um feitiço junto do "Pau Votivo" pois eles não têm imagens, bonecos ou fetiches. Diz ele:"vou fazer feitiço prá aparecer "arefante". Juntou algumas mulheres em volta do "pau votivo", pintou-lhes as caras com cinza e uma pasta branca, fez muitos gestos "cabalísticos", fez umas rezas e foi tudo; aliás bastante breve. 
Era ainda bastante cedo e continuamos na nossa busca, e já da parte da tarde fomos encontrar os caçadores americanos e pouco depois, finalmente, um elefante que eles mataram. 
Ao regressar à Coutada passamos pela "libata" e dissemos ao Soba que na madrugada seguinte passaríamos por ali para os levar até junto do elefante para eles o esquartejar e dividir. Aqui um à parte; como deve ter subido o prestígio daquele "kimbanda" junto do seu povo! Fazer o feitiço e, no mesmo dia aparecer elefante, é obra! Pelo menos o alarido das mulheres dava-lhe nota alta. Assim, no dia seguinte carregamos o jeep com uma multidão de homens com catanas e facas e mulheres com bacias e alguidares.
E lá chegamos ao elefante. Enquanto os homens abriam o

paquiderme (tudo isto nós, o Raul e eu íamos fotografando e filmando enquanto o Emílio tirava notas).
As mulheres faziam um estendal para posteriormente porem a carne a secar. Omito os pormenores do desmontar do bicho que era bastante repugnante à vista e ao olfacto. Quero realçar a forma como foi feita a distribuição da carne pelas mulheres; O Soba separava uns pedaços de carne de diferentes partes do elefante, chamava uma mulher e entregava-lhe a porção que entendia; certamente segundo o número de pessoas que ela teria a seu cargo e nenhuma disse: "Aquela teve mais do que eu". (havia de ser cá!!!) Disciplinadamente ia estender no varal a parte que lhe coubera. 

Entretanto alguns homens punham às costas porções de carne a afastavam-se até desaparecerem da nossa vista. Perguntamos para onde iam e foi-nos dito que iam levar a carne a outros povos vizinhos que noutras ocasiões tinham feito o mesmo com eles. Mas o mais estranho veio a seguir.
Com o maior espanto vejo aproximarem-se dois buchimanes com dois paus às costas que sem dizerem nada se metem também dentro do elefante e vá de cortar carne. Sabendo como era grande o ódio entre os Bantus e os Mucancalas (o mesmo que buchimane) imaginamos logo ali um massacre. Nada disso; os homens enfiaram a carne que puderam nos paus que traziam, puseram-nos atravessados nos ombros e, sem dizer água vai, lá se foram por ponde vieram.
A explicação que nos foi dada pelo próprio Sóba foi que se toda a gente tem fome, quando se apanha um elefante ou outro animal grande toda a gente tem direito a levar aquilo que for capaz de carregar. Mas não sejamos românticos e não vejamos nisto um simples acto de solidariedade. O instinto da sobrevivência, fala aqui muito alto: "hoje por ti amanhã por mim", mas não deixemos de pensar quão diferentemente se passam as coisas neste nosso mundo civilizado. Ou mesmo naquela mesma África mas mais para o Norte, Luanda, Uíje, Malange, etc onde o contacto dos povos nativos com os europeus é mais estreito e antigo. 

Já se sabe que mais depressa se absorvem os maus exemplos do que os bons. 
De qualquer forma, o que me deixou marca foi realmente o episódio solidário e humano que presenciei do "ELEFANTE REPARTIDO".

João Silva
Blog Roxa Xenaider

terça-feira, 7 de maio de 2019

A PROFESSORA (Antigamente é que era bom!)


Quando os meninos me pediam "papel macio pró cu e roupa boa prá gente"…
Um dos textos que mais me custou a escrever e por isso tem mais lágrimas do que palavras.

Estávamos ainda no século XX, no longínquo ano de 1968, quando a vida me deu oportunidade de cumprir um dos meus sonhos: ser professora. 
Dei comigo numa escola masculina, ali muito pertinho do rio Douro, na primeira freguesia de Penafiel, no lugar de Rio Mau.
Era tão longe, da minha rua do Bonfim, não podia vir para casa no final do dia, não tinha a minha gente, e eu era uma menina da cidade com algum mimo, muitas rosas na alma, e tinha apenas 18 anos.
Nada me fazia pensar que tanta esperança e tanta alegria me trariam tanta vida e tantas lágrimas.
Os meninos afinal eram homens com calos nas mãos, pés descalços e um pedaço de broa no bolso das calças remendadas.
As meninas eram mulheres de tranças feitas ao domingo de manhã antes da missa, de saias de cotim, braços cansados de dar colo aos irmãos mais novos, e de rodilha na cabeça para aguentar o peso dos alguidares de roupa para lavar no rio ou dos molhos de erva para alimentar o gado.
As mães eram mulheres sobretudo boas parideiras, gente que trabalhava de sol a sol e esperava a sorte de alguém levar uma das suas cachopas para a cidade, “servir” para casa de gente de posses.
Seria menos uma malga de caldo para encher e uns tostões que chegavam pelo correio, no final de cada mês.
Os homens eram mineiros no Pejão, traziam horas de sono por cumprir, serviam-se da mulher pela madrugada, mesmo que fosse no aido das vacas enquanto os filhos dormiam (quatro em cada enxerga), cultivavam as leiras que tinham ao redor da casa, ou perto do rio e nos dias de invernia, entre um jogo de sueca e duas malgas de vinho que na venda fiavam até receberem a féria, conseguiam dar ao seu dia mais que as 24
horas que realmente ele tinha. Filhos, eram coisas de mães e quando corriam pró torto era o cinto das calças do pai que “inducava” … e a mãe também “provava da isca” para não dizer amém com eles…
E os filhos faziam-se gente.
E era uma festa quando começavam a ler as letras gordas dum velho pedaço de jornal pendurado no prego da cagadeira da casa…o menino já lia.. ai que ele é tão fino… se deus quiser, vai ser um homem e ter uma profissão!
Ai como a escola e a professora eram coisas tão importantes!
A escola que ia até aos mais remotos lugares, ao encontro das crianças que afinal até nem tinham nascido crianças…eram apenas mais braços para trabalhar, mais futuro para os pais em fim de vida, mais gente para desbravar os socalcos do Douro, mais vozes para cantar em tempo de colheitas.
E os meninos ensinaram-me a ser gente, a lutar por eles, a amanhar a lampreia, a grelhar o sável nas pedras do rio aquecidas pelas brasas, a rir de pequenas coisas, a sonhar com um país diferente, a saber que ler e escrever e pensar não é coisa para ricos mas para todos, para todos.
E por lá vivi e cresci durante três anos e por lá fiz amigos e por lá semeei algumas flores que trazia na alma inquieta de jovem que julgava conseguir fazer um mundo menos desigual.
E foi o padre António Augusto Vasconcelos, de Rio Mau, Sebolido, Penafiel, que me foi casar ao mosteiro de Leça do Balio no ano de 1971 e aí me entregou um envelope com mil oitocentos e três escudos (o meu ordenado mensal) como prenda de casamento conseguida entre todos os meus alunos mais as colegas da escola mais as senhoras da Casa do
Outeiro. E foi na igreja de Sebolido que batizou o meu filho, no dia 1 de janeiro de 1973.
E é deste povo que tenho saudades. O povo que lutou sem armas, que voou sem asas, que escreveu páginas de Portugal sem saber as letras do seu próprio nome.
Hoje, o povo navega na internet, sabe a marca e os preços dos carros topo de gama, sabe os nomes de quem nos saqueia a vida e suga o sangue, mas é neles que vai votando enquanto continua á espera de um milagre de Fátima, duns trocos que os velhos guardaram, do dia das eleições para ir passear e comer fora, de saber se o jogador de futebol se zangou com a gaja que tinha comprado com os seus milhões, e é claro de ver um filmezito escaldante para aquecer a sua relação que
estava há tempos no congelador.
As escolas fecharam-se, os professores foram quase todos trocados por gente que vende aulas aqui, ali e acolá, os papás são todos doutores da mula russa e sabem todas as técnicas de educação mas deseducam os seus génios, os pequenos /grandes ditadores que até são seus filhinhos e o país tornou-se um fabuloso manicómio onde os finórios são felizes e os burros comem palha e esperam pelo dia do abate.
Sabem que mais?!
Ainda vejo as letras enormes escritas no quadro preto da escola
masculina, ao final da tarde de sábado, por moços de doze e treze anos com estes dois pedidos que me faziam: “Professora vá devagar que a estrada é ruim, e não se esqueça de trazer na segunda-feira, papel macio pró cu e roupa boa dos seus sobrinhos prá gente”.
Esta gente foi a gente com quem me fiz gente.
Hoje, não há gente… é tudo transgénico .
O povo adormeceu à sombra do muro da eira que construiu mas os senhores do mundo, estão acordadinhos e atentos, escarrapachados nos seus solários “badalhocamente” ricos e extraordinariamente felizes porque inventaram máquinas e reinventaram novos escravos.

Dizem que já estamos no século XXI...”

Profª. Lourdes dos Anjos