terça-feira, 22 de novembro de 2011

LESTE DE ANGOLA - 24

“LESTE DE ANGOLA”
Memórias de um passado saudoso

NORTE DE ANGOLA – 1973

     Com proveniência da Beira, Moçambique, e de viagem num DC-6 da FAP durante seis horas de voo, eis-me chegado à capital angolana – Luanda.
     Anotava no meu roteiro, a data de 29 de Julho de 1973, meu 32º. dia de férias – DOMINGO.
     Para descongestionar os dias atribulados, passei por alguns momentos de repouso porém, logo pela manhã do dia seguinte, tratei de elaborar os meus planos preparando-me para uma nova fase de aventura. 
     Depois do pequeno-almoço tomado na Messe dos Sargentos, situada na Avª. dos Combatentes, dirigi-me à casa dos tios do José Soares, “o bacalhau”. Tinha tido conhecimento de que o meu grande companheiro de viagem por terras de Angola, em 1972, se encontrava a passar o fim-de-semana na cidade, e desejoso de lhe contar as minhas peripécias destas minhas últimas andanças, tive o propósito do reaver. Encontrado, travámos uma conversa contínua dando início a um passeio citadino que era marcado sempre pela mesma rotina. Fomos ao Casão Militar e demos andamento pela marginal, local aprazível junto às águas do Porto e com vistas para a magnífica Ilha de Luanda. Desde a Fortaleza de S. Miguel até à Estação de Caminho de Ferro, tudo foi palmilhado de forma descontraída e sem cansaço. Era a nossa melhor Avenida, aquela das peculiares palmeiras barradas a branco e que traçavam o limiar das águas do mar. Nela, memorizava-se o gigante “BCA”, o Palácio do Governo, lojas pitorescas, movimento de vai e vem ininterrupto – característico da maior cidade da costa ocidental de África – “a nossa Luanda.”

BANCO DE ANGOLA                                             FORTALEZA DE S. MIGUEL        
     Perpendicularmente à Marginal, tomámos o norte à majestosa Praça da Maria da Fonte, duplamente conhecida pela estátua central, pelo Mercado de Sant`Ana e pelo edifício da “CUCA”. Tínhamos como destino imediato o café “Mónaco”, local frequentado pelos nossos companheiros de armas, ponto de referência para conversas e discussões sobre o porte feminino da época.
     Após o jantar, eu, o Rui Silva (Ocart), José Soares (Eabt) e o Ribeiro Silva (Piloto), fomos tomar o café ao “Everest”, para numa fase quase simultânea seguirmos para o bairro Marçal, e cairmos em “nós” no mesmo “Mónaco” – o café das confidências…
     Tirando as curtas viagens do aeroporto para a cidade e vice-versa, as passagens pela Mutamba, os gelados do Pólo Norte, as cervejas bebidas na Portugália e no Biker, os filmes projectados nos cinemas Miramar, Trópico, Avis, Tivoli, …,… desmaiava-se na rotina de fim de semana na capital contudo, de forma diferente dos afazeres constantes no velho Saurimo.
     Ora, como nunca gostei de estar parado por muito tempo, comecei a pensar em aproveitar os dias de férias que ainda me faltavam gozar. Conhecer outras paragens e gentes angolanas, era a minha determinação, e assim parti para o Norte.
     Na madrugada de Terça-feira apanho um táxi que me levou à Estação de Caminhos de Ferro, lá para os lados do Porto, na extremidade da Marginal Norte. O relógio da Estação marcava as cinco da madrugada, mas o dia já despontava nesta Província africana. O destino pela via ferroviária levar-me-ia à cidade de Salazar, duzentos e cinquenta quilómetros para Leste. A lentidão do comboio demoraria cinco horas e com diversas paragens ao longo da linha.
     Tratava-se duma viagem já minha conhecida em que se apresentavam algumas precauções pois, na frente da locomotiva, seguia sempre um quebra minas para “alisar” o terreno. Vagarosamente, percorria-se toda a vastidão do Cuanza Norte, e de paisagem em paisagem, sentia-se um contentamento interior pelo momento gozado. Raiava o nascer do sol por entre as longas pernadas dos cactos, dando vez aos embondeiros, palmeirais e matas serradas que numa combinação consentida, deixavam-se penetrar pelo gigante de ferro.
     A meio do percurso, fazia-se uma pausada paragem para se tomar o pequeno-almoço. Tudo combinado. O revisor, enquanto fiscalizava os bilhetes, anotava a clientela. Depois, telegrafava para o restaurante muito conhecido na Estação de Canhoca a fim de reservar mesa para este tipo de “turistas”. Era um mimo! 
ESTAÇÃO DE CANHOCA         
     Salazar, seria a minha Estação final, para de seguida enfrentar a viagem com boleias diversas. Lucala, Samba CajúCamabatela, Negage e Carmona, eram as cidades que estavam inseridas no meu roteiro.
     Num camião de marca “Leiland” prossigo viagem até ao Negage, com paragens breves nas povoações de Samba Cajú e Camabatela. Pelo caminho perscrutava a paisagem montanhosa com vegetação rasteira. Sendo localidades de pequena monta, não deixavam de ter algum pormenor com interesse e que pudesse e merecesse ser fotografado. Assim, amontoei fotografias de igrejas, únicos monumentos de realçar por terem características menos comuns.

IGREJAS DE SAMBA CAJU E CAMABATELA
PORTA DE ARMAS E RUA DO NEGAGE
     Negage, não tinha qualquer atractivo de renome para o visitante. Havia sim, a Unidade militar e, esta, tratava-se simplesmente do Aeródromo Base nº. 3, tal qual o nosso de Henrique de Carvalho. Aqui, teci as minhas críticas confrontando este aeródromo com o de Luanda e o do Saurimo. Sem “cunhas”, coube-me o A.B.4, e decerto que não foi o pior!
     Em todas as Bases encontrei gente minha conhecida e, nesta, deparei-me com o velho amigo açoriano Hélder Vitorino, aquele que me ajudou no tirocínio de especialidade na Base das Lajes.
     De mota, percorremos toda a cidade e arredores. Deu-me a conhecer gente da sua Ilha Terceira – vaqueiros radicados nestas paragens há longos anos. Viam-se quintas verdejantes, gado bovino em toda a área, belas instalações para a ordenha, técnica desenvolvida com semelhança às gentes da Cela, no Huambo.
     No aquartelamento, outras caras conhecidas se apresentaram. Um tal José de Sousa, meu amigo de infância e da minha terra natal, o Clemente, Orlando, Amaral – controladores neste aeródromo, sendo que dois foram do meu curso. Parecia que o mundo era pequeno. Tinha “família” nos cantos onde a língua lusa era falada.
     Conhecidas as instalações, tão semelhantes às de Saurimo, logo se me deparou prosseguir viagem até à próxima cidade, e daí, até Carmona, capital do Uíge.
     Visitei o Museu, a piscina onde actuou a nossa fadista Amália e por fim, o mercado local com as suas bananas de fritar, gigantescas.
PISCINA E RUA DE CARMONA
MERCADO EM CARMONA
     Desiludido com esta viagem, prometi   regressar a Luanda por outra rota, por aquela em que o Tarzan viveu, onde a Rainha Ginga reinou, terras da vivência do conhecido e afamado “Zé do Telhado”, zona de reserva e parque nacional da espécie rara da Palanca Negra, Pungo Andongo, e assim tomei o caminho das grandiosas “Quedas de Água do Duque de Bragança”, e isto, já na direcção de Malange. 
     Pois bem, retorno à estrada que me levou ao Negage e rasgo caminho até Samba Cajú e, isto, motivado por duas razões: Uma, porque a rota mais curta que me levaria a Luanda, passando pela Fazenda de Bulungundo, Quissenzel, Quindembe, Bulabando e Caxito, se encontrava protegida por coluna militar sendo o perigo eminente. A outra, porque o retorno a Samba Cajú me levaria a zonas de rara beleza e duma historicidade imensa, tudo incutido nas redondezas de Malanje.
    Ora, perto de Samba Cajú (deixando Camabatela para trás), e mais propriamente numa localidade de nome Matamba, escuto um residente muito estudioso que me fala sobre lendas e factos reais da sua própria vila e arredores.
     Começa assim: “Aqui viveu uma Rainha Negra – a Rainha Ginga.  Símbolo de Angola e apreciada como o nosso Viriato. Esta Rainha nasceu em 1583, na Matamba, e faleceu em 17 de Dezembro de 1663. Também conhecida por Rainha “Ngola” pertencente aos reinos do Ndongo e Matamba. O seu título real e na língua quimbundo “Ngola”, foi o nome utilizado pelos portugueses para denominar esta região (Angola). A célebre Rainha Ginga completava-se com o nome de Ngola Ana Nzinga Mbande ou, simplesmente, Dona Ana de Sousa.
     Viveu durante o período em que o tráfico de escravos e a consolidação do poder dos portugueses na região estava a crescer rapidamente. 

     Era filha de Nzinga Mbande Ngola Kiluanje e de Gueguela Cakombe, e irmã do Ngola Ngoli Bhondi (o régulo da Matamba), que revoltado contra o domínio português em 1618, foi derrotado pelas forças sob o comando de Luís Mendes de Vasconcelos. O seu nome surge nos registos históricos três anos mais tarde, por altura de uma conferência de paz de seu irmão com o governador português de Luanda. Após anos de incursões portuguesas para capturar escravos, e entre batalhas intermitentes, Ginga negociou um tratado de termos iguais, converteu-se ao cristianismo para fortalecer o tratado e adoptou o nome português de Dona Ana de Sousa.
     Ginga formou uma aliança com o povo Jaga e conquistou o reino da Matamba, que pertence à província de Malanje, redondezas das quedas do Duque de Bragança e das afamadas Pedras Negras de Pungo Andongo.
     Após a sua morte, sete mil soldados desta Rainha foram levados para o Brasil e vendidos como escravos. Os portugueses passaram a controlar a área em 1671.
     No Brasil, o nome da Rainha Ginga é referido em vários folguedos da Festa de Reis dos negros do Rosário, onde reis do Congo católicos lutam contra reis que não aceitam o cristianismo.”
     Ouvida esta particularidade histórica, seguir-se-iam outras que passarei a narrar durante a restante parte da minha viagem.
QUEDAS DUQUE DE BRAGANÇA
     Deixando a Matamba, local onde se encontra sepultada a grande Rainha, a heroína angolana, - logo prossegui em largas passadas na direcção às quedas do Duque de Bragança. Reconheço as povoações de Quilemba, Munguengue, Lucala, e tomo o rumo de Malanje. Passo por Cacuso e viro no Lombe, para subir até Kalandula. Detenho-me neste paraíso por longos momentos e avidamente absorvo toda a paisagem circundante e recordo as lendas do meu narrador. Estou na presença das segundas maiores quedas de água de todo o continente africano – as conhecidas quedas do Duque de Bragança.  Estas quedas afloram-se no rio Lucala e têm cento e cinco metros de altura. Em grandiosidade seguem-se às quedas Vitória, no rio Zambeze, na ex-Rodésia. A sua beleza só causa deslumbramento em ser visualizada porque, ao ser descrita, perde todo o encanto que representa.
     Sei que cheguei a este local numa das alturas de seca e o curso do rio seguia baixo. No topo, as pedras gigantescas, já gastas pela erosão, sobrepunham-se às águas e, de pedra em pedra, saltitava-se todo o trajecto da largura do rio e em precipício. Lá em baixo, a estrondosa corrente despenhava-se na verdejante planície, e o rio vagaroso seguia o rumo ao Cuanza, seu pai por opção. 
QUEDAS DE KALANDULA                                                      RIO LUCALA             
     Que histórias ou, lendas me contou o meu narrador?! As histórias e lendas da Rainha Ginga e as do Tarzan, nosso herói africano. Contou ele que…
     “Tarzan teria nascido e vivido nos vastos reinos da Rainha Ginga posto que, segundo a teoria do grande conhecedor de geografia e cartografia, Edgar Rice Burroughs, determinou como terra natal de Tarzan, a região situada a mil e quinhentas milhas da cidade do Cabo ou, como Latitude Sul, a de 10 graus. O primeiro local corresponde à cidade de Benguela, e o segundo é junto ao Cabo de São Brás, a cento e trinta quilómetros a Sul de Luanda. Entre o paralelo 10 e Benguela vão trezentos quilómetros em linha recta – extensão excessiva para dois locais completamente diferentes. Mas se efectuarmos a medição do percurso marítimo para a cidade do Cabo em milhas náuticas, o novo local será relativamente perto, a cinquenta quilómetros a Sul do Cabo de São Brás, próximo da desembocadura do rio Longa, a Norte de Porto Amboim.
     Analisando mais em detalhe as duas informações dadas por Burroughs (cerca de 10 graus Sul na direcção do Cabo ou, quinze centenas de milhas para o Sul), verificamos serem duas indicações pouco precisas no que  se admite alguma margem de erro. A latitude poderá ser entre 9 a 11 graus e a distância da cidade do Cabo ficar entre 1 550 a 1 450 milhas. Acrescentando outro factor importante sobre o ambiente da história africana  de Tarzan, onde encontramos gorilas, animais da selva tropical húmida, e também animais que habitam a savana, como leões, rinocerontes e grandes elefantes – a região terá que ser um misto de selva e savana ou, de transição entre as duas. Além disso, está também descrito que a selva deveria prolongar-se até junto às areias da praia banhada pelo Oceano Atlântico. Nestas condições, pensa-se que a localização mais provável seria a Barra do Cuanza, estendendo-se pelo interior do rio e seguindo o afluente Lucala até às quedas” … onde me encontro.
     De Kalandula (D. de Bragança), subo mais um pouco a fim de visitar e conhecer a “Mesa da Rainha Ginga” – local com largas referências na história de Angola.
MESA DA RAINHA GINGA              
     Tomando mais uma vez a rota originária, desço em prol de Malanje, passo pela capital de Província, volto para Sul e percorro grande parte do Parque Nacional de Kagandala para contactar de perto com o imponente e raríssimo antílope – a Palanca Negra Gigante, símbolo marcante de Angola.
     Este trecho que se segue, quem o vai narrar, sou eu:
     Parque estabelecido em 1970 com uma área de seiscentos quilómetros quadrados. Nessa época, quem matasse um destes animais em vias de extinção, levaria como multa a importância de mil contos, e com prisão garantida.
     A Palanca Negra existe apenas em duas áreas de conservação na Província de Malanje – a reserva integral de Luando e o Parque Nacional da Kangadala, sendo a imagem da Companhia aérea angolana TAAG. O nome pelo qual é conhecida a selecção nacional de futebol “Palancas Negras” também foi inspirado neste antílope

    Este tipo de antílope foi descoberto em 1909 por Frank Varian, engenheiro belga ao serviço dos Caminhos-de-Ferro de Benguela. Em vias de extinção motivado sobretudo pela guerra civil angolana, eis que foram retomadas medidas de protecção e assim surgiu a esperança de voltar a ver manadas dos mais belos animais africanos.
     A Palanca Negra é uma rara espécie de antílope, única no mundo, que tem como berço a Província de Malanje. Este animal, segundo a mitologia africana, é símbolo de vivacidade, velocidade e beleza.
     Até ao terceiro ano de idade, machos e fêmeas são muito semelhantes, até que os machos começam a se tornarem escuros e os chifres a crescerem em maneira desproporcionada. Um macho adulto mede ente 116 a 150 centímetros e pesa mais de 240 quilogramas, enquanto que as fêmeas permanecem pequenas.
     Nos machos os chifres são curvos e em meia-lua atingindo 165 centímetros de comprimento. Tendem a viver próximos das fontes de água e nutrem-se de ervas rasteiras. É imponente e de rara beleza como se mostram nas fotografias anexas.
     Para se percorrerem os locais mais apelativos temos que vaguear constantemente e, neste profundo e vasto território, assim aconteceu por diversas ocasiões.
CAMILO E ZÉ DO TELHADO          
     Retornei ao cruzamento de Malanje e enveredei pela estrada que seguia para Henrique de Carvalho. Deparei-me com as povoações de Cambondo, Catala, Caculana e, por fim, Mucari. Junto à última localidade, procurei saber onde se situava a velha aldeia de Xissa, essa aldeia onde se encontra sepultado o conhecido “Zé do Telhado”.
     Estando em Angola, eu, não abandonaria este país sem prestar homenagem ao homem que intitulávamos de “Robin dos Bosques português”.
     Curiosamente, soube mais pormenores acerca da sua evasão e desterro para terras das Lundas, para além das suas conhecidas aventuras na Metrópole. Resumo tudo à maneira contada pelo meu narrador…
     Celebrizado pela sua audácia enquanto salteador, Zé do Telhado foi um valoroso combatente militar cujos créditos foram reconhecidos. Enquanto militar, lutando pelos liberais contra os absolutistas, subsistem diversos registos e relatos da sua valentia, tendo recebido a medalha de Torre e Espada, por actos heróicos nas hostes de Sá da Bandeira, do Duque de Setúbal e na revolta da Maria da Fonte.
     José Teixeira da Silva, o famoso Zé do Telhado, terá nascido a 22 de Junho de 1818 no lugar do Telhado (de onde origina o seu nome popular), aldeia de Castelões de Recesinhos, na comarca de Penafiel. Reza a lenda que era filho de um chefe de uma quadrilha de ladrões e de uma família cuja principal actividade era extorquir o alheio. De facto, quer o seu tio-avô, quer o seu pai haviam sido quadrilheiros, tal como o seu irmão mais velho.
     Casado com a sua prima Ana Lentina de Campos (a boda celebrou-se a 3 de Fevereiro de 1845), Zé do Telhado entrega-se à vida militar de corpo e alma, sendo condecorado pela sua bravura. Após algum tempo, regressa para o seio da família, uma transição que contou com diversos obstáculos, nomeadamente, o facto de ter dívidas pelo não pagamento de impostos, acabando por ser expulso das Forças Armadas. Sem conseguir arranjar trabalho, restou a Zé do Telhado transformar-se no mais famoso bandoleiro de Portugal.
     Com as autoridades no seu encalço por todo o País, Zé do Telhado resolveu fugir para o Brasil, escondeu-se na barca “Oliveira”, acostada no Porto. Ali estava à guarda de Ana Vitória, uma mulher que fora sua vítima mas que se tornara sua admiradora. Cabe-lhe a ela a frase lapidar que o transformou no Robin dos Bosques português ao dizer: “existem pessoas de bem que nunca deram às classes humildes um centésimo do que lhes deu Zé do Telhado.”
     Viria a ser capturado pelas autoridades e preso na Cadeia da Relação, no Porto, onde conheceu o escritor Camilo Castelo Branco.
     O seu julgamento teve início a 25 de Abril de 1859, com acusação pública em 9 de Dezembro do mesmo ano. Foi condenado na pena de trabalhos públicos por toda a vida, na costa ocidental de África e no pagamento das custas. Esta pena foi comutada pelo Tribunal da Relação do Porto em 15 anos de degredo para África, sendo publicada em Setembro de 1863.
     Já em Malanje, tornou-se negociante de borracha, cera e marfim e casou com uma local, de nome Conceição, com quem veio a ter três filhos. Era conhecido entre os angolanos como o “quimuêzo”, ou seja, o homem de barbas grandes, já que as deixara crescer desde que chegara a África.
     Zé do Telhado morreria de varíola em Angola em 1875, com 57 anos, sendo sepultado na aldeia de Xissa. Ainda hoje são feitas romagens à sua campa e surge na boca dos anciãos como figura mítica e protectora dos mais desfavorecidos.
CAMPA DO ZÉ DO TELHADO (EM XISSA-ANGOLA)          
     Entretanto, as minhas férias estavam a finalizar e, embora houvesse muito para conhecer, era altura de preparar o meu regresso a Luanda.
     De Xissa até Malanje faziam-se cinquenta quilómetros, mas de Malanje à capital, somavam-se quatrocentos e cinquenta. Pelo caminho, ainda tinha que fazer uma visita de cariz panorâmico e histórico. Tratava-se da fortaleza natural de Pungo Andongo, situada nos arredores de Malanje, já na tomada de Cacuso.    
     Pedras Negras de Pungo Andongo, local onde faleceu a Rainha Ginga. Nestas gigantescas pedras, reza a lenda que esta rainha ali deixou a sua marca bem cravada nas pedras que pisou.
     Gigantescos megalitos a cerca de 116 quilómetros de Malanje e a 90 quilómetros das quedas de Duque de Bragança. Situam-se entre os rios Lucala e o Cuanza, a Oeste de Mbaka.
     A configuração destas pedras enormes, que chegam a atingir mais de cem metros de altura, chega a lembrar paisagens extra terrestres, resultado provável de grandes convulsões da Era Glaciar.
     A cor predominante das rochas é o preto, apesar de serem constituídas de massas de gneisses, xistos vermelhos e calcários de colorações diversas. A cor preta, provém de determinadas algas filamentosas que se desenvolvem nas águas absorvidas pela rocha.
     Pungo Andongo, impõe respeito, imponência e silêncio. Fortaleza natural das hostes da Rainha Ginga, aspirando à unificação dos povos de todos os Sobados do reino Ngola, combatendo e submetendo Jagas, o Libôlo, a Matamba, o Kassange e se preparava para aumentar os seus domínios até à Kissama.

     Bem no alto de um dos maiores monólitos do Pungo Andongo, vê-se nítida, em baixo relevo na rocha, a marca de um pé enorme. Diz a lenda que é a marca da pegada da Rainha Ginga, que tinha esse lugar com ponto principal de observação à aproximação de tropas invasoras.
PUNGO ABDONGO E PEGADA DA RAINHA GINGA             
     No retorno a Luanda passei por vilas e cidades já referidas por mim em crónicas anteriores (Salazar, Dondo). Sendo a viagem longa e já conhecida, havia que arrepiar caminho e apresentar-me às autoridades militares na data precisa.
     Para pôr termo às minhas crónicas africanas, só terei que me propor a fazer uma dissertação pela capital e subúrbios, texto a apresentar na próxima ocasião.

Até breve
VÍTOR   OLIVEIRA - OCART

                                                                               

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

LESTE DE ANGOLA - 23

“LESTE DE ANGOLA”
Memórias de um passado saudoso

DE ANGOLA A MOÇAMBIQUE – 1973

Do Tofo, parti para a praia da Barra, em Miramar. Daí, desfrutei dum pôr de sol esbatido a ouro sobre um pacífico horizonte. Encontrava-me no outro lado do Mundo…
     E, nesse mesmo lado, dei início a mais uma viagem à beira mar, conhecendo as pérolas do que são hoje as praias mais  visitadas pelos turistas, em Moçambique. Desta feita, e pela madrugada, parto noutra boleia na direcção da capital porém, era de meu interesse percorrer toda a língua costeira e visitar as famosas estâncias balneares.
     O condutor, pessoa radicada nestas paragens há imensos anos, era um descendente dum proprietário e fundador duma fábrica de descasque de arroz na pequeníssima Vila de Palmeira. No percurso, falou-me da sua vida, da labuta, e das origens do local onde viveu toda a sua geração.
     “Palmeira, povoação do distrito da Manhiça deve o seu nome à existência de uma espécie desse tipo de árvore junto à estrada, que sobrevive há muitos anos. E a importância de Palmeira, como Vila, derivou da existência duma fábrica de descasque e processamento de arroz produzido no regadio do Chokwé, no vale do Limpopo. A fábrica foi construída no início da década de quarenta e, essa Firma pertence ao meu pai”.
     Foram estas as palavras do meu companheiro e condutor, como que para iniciarmos a viagem.
     E assim continuou com outras narrações referentes ao lugar e às gentes destas paragens…
     “Meu pai chegou a Palmeira com vinte e sete anos quando tudo era inabitado. Foi ele que mandou edificar a fábrica de descasque de arroz após três anos da sua chegada à Província  Moçambicana, em 1937. Sobre a árvore (palmeira centenária), há indicação de ter sido uma das referências geodésicas do tempo  de Gago Coutinho pois, a placa junto deste “monumento" atesta que terá sido o ponto de orientação no reconhecimento da triangulação geodésica concebida e executada pelo célebre aviador, em 1906/08”.
     Por investigação recente, vim a saber que o pai deste meu interlocutor veio a falecer em 1992. A Firma continuou a ser gerida pelos seus filhos até à presente data. Na sua boa orientação, chegou a processar cerca de 21 000 toneladas de arroz na época dourada, há vinte e tantos anos atrás. Posteriormente, devido à guerra e à falência do Complexo Agro-Industrial do Limpopo, tudo começou para uma laboração mais reduzida. Contudo, ainda hoje emprega cerca de duzentos e cinquenta trabalhadores (fixos), aumentando o número em ocasiões especiais com outros trabalhadores eventuais.
Arrozal no Limpopo e fábrica de descasque do arroz
     E a velha palmeira morreu de acidente natural… em Agosto de 2004!...
     A Vila continuando pacata, com as suas casas perfiladas ao longo da estrada, transparece respirar de cansaço numa imobilidade eterna, e o casario morre na esperança de ser levado pela estrada que o serve.
     Essa palmeira, conhecida pelo marco da Estrada Nacional Número Um, sucumbiu pela força dos ventos fortes que se fizeram sentir na zona Sul do país. Era a palmeira que tinha dado o nome ao posto administrativo que hoje é conhecido e que era visível a grande distância para quem, vindo do Norte, se deslocava para a capital. Assim fiquei com o conhecimento histórico duma Vila, dum homem, duma família inteira e duma empresa situada no paralelo de Capricórnio.
     Agora, havia que seguir caminho fazendo um retrocesso até à praia de Chongoene, e de salto em salto, percorrer as praias circundantes, todas de raríssima beleza. 
Chongoene - Vila e a praia
     Por momentos deparo-me com uma das mais famosas – a praia Sepúlveda, e desta pequena localidade, relembro histórias curiosas que me foram contadas por uma funcionária dos correios, numa altura em que dava despacho a uma carta para os meus pais, em Portugal.
     Contou-me ela de que estes mares eram infestados de tubarões perigosos. Frequentemente noticiavam-se acidentes constantes em que apareciam partes de corpos rolando na praia pelo efeito da ondulação. Contudo, havia um pequeno lago encravado numas rochas paralelas à língua de praia que protegendo o acesso directo ao mar permitia aos banhistas um descanso fora de perigo. Todo o veraneante vivia o dia-a-dia acostumado a banhar-se nessas águas pois, era o local mais protegido das redondezas e nunca se tinha constado qualquer ataque por parte dos tubarões.
Tubarão Tigre
Entretanto, junto à beira mar dava-se começo a umas obras que fariam a edificação dum enorme hotel, mas que necessitava de pedra para a construção dos alicerces. Pensaram que a forma mais fácil de resolver seria com a aquisição da pedra dinamitando o paredão situado no mar e que, com a maré baixa, se tornava acessível a extracção e transporte do material.
     Com a brecha causada no alinhamento do rochedo, as águas tornaram-se livres para o mar mais profundo dando acesso à penetração de algum tubarão mais atrevido.
     Passaram-se dias, e os banhistas, sem conhecimento do perigo eminente, tanto por não terem sido avisados, como pela habituação ao bem-estar náutico, continuaram na diversão do chapinhar nas águas daquela que viria a tornar-se na lagoa assassina. Sem contarem, esses peixes de porte gigantesco (tubarões tigre), duma ferocidade atroz, atacaram todas as pessoas ferindo e matando quanto puderam. 
Praia e hotel de Sepúlveda
     O Hotel acabou por se construir, mas o luto foi tanto que o próprio edifício se foi amortalhando num ápice.
     Noutra passagem macabra, dois rodesianos solicitaram a um especialista australiano na caça ao tubarão, a permissão de o acompanharem numa das suas saídas. Renitentemente, o australiano aceitou levá-los. Aconselhou-os a porem em prática todos os procedimentos por ele ditados no caso de serem visitados por tubarões. Ensinou-lhes todas as acções informando-os a executarem movimentos lentos, confiança, natação em grupo, posição frontal.
O bicho apareceu solitário. Enorme, monstro nunca visto tão pertinho dos rodesianos. Receosos do ataque, tomam a decisão de nadar com todas as forças para terra, deixando a sós o australiano.
Picada para Xai-Xai
     Este, tentando evitar a corrida do tubarão para com os outros amigos, depara-se com uma luta terrível com a fera. Debilitado, ainda consegue atingir a areia, mas com imensa dificuldade devido a inúmeros ferimentos. Após a primeira intervenção de socorro, sobrevive mesmo com a falta de dois membros (perna e braço), e com a zona estomacal perfurada. A população de Xai-Xai juntou-se e fizeram uma colheita de sangue para efeitos de transfusões diversas. Após a reabilitação, o estrangeiro parte para o seu país natal, e passado um ano, regressa à cidade de João Belo para agradecer a sua salvação. Desta, vinha com duas próteses, mas vivo de alegria.
     Sepúlveda pertence à capital de província de Xai-Xai, outrora, chamada de cidade de João Belo. 
     João Belo, nome de um antigo administrador português nascido em 1876 e falecido em 1928. Foi capitão-de-mar-e-guerra e desde cedo embarcou para Moçambique, integrando as campanhas dos Namarráis e de Gaza sob as ordens de Mouzinho de Albuquerque.
     Foi o responsável pelo levantamento hidrográfico da foz e barra do Limpopo, pela sua farolagem e balizagem e por diversas missões de estudo do vale do Limpopo. Em 1926 desempenhou o cargo de ministro das Colónias e foi governador em Moçambique.
     Xai-Xai, pelo seu nome, pensa-se derivar do régulo Languene, mais conhecido por Tchai-Tchai, e que governou na zona de Denguene.
     Antes da chegada dos portugueses, este lugar já era habitado pela tribo Nduandue, fundador do império de Gaza. Evoluiu a partir da criação dum porto fluvial, junto ao rio Limpopo, graças às trocas comerciais. A povoação foi reconhecida desde 1897 e denominada por “João Belo”. Em 1961, com a construção de um dique de defesa após as cheias de 1955 e a estrada Nacional nº. 1, em 1958, ganhando mais relevo, foi elevada à categoria de cidade – cidade de João Belo.
Praia de Bilene
     Os dias passavam e os fervores de conhecer outras estradas forçaram-me à movimentação. O plano estava traçado e o nome de S. Martinho de Bilene soava-me a conquista. Tomo o transporte de uma carrinha e, pelo aspecto do “chauffeur” denoto um rosto carregado de aventura. Troca-se conversa e da sua boca ainda recordo o conteúdo falado que tive com este novo amigo. Empregado numa indústria de plásticos, narra-me a situação política vivida na época. Seu patrão, industrial e rico, tomou este ramo de empresa como monopólio em Moçambique. Por influência política, qualquer tentativa extra, na criação de uma unidade fabril congénere e que não fosse de sua propriedade, morria à nascença. Apesar de tudo, beneficiava os seus colaboradores mais directos oferecendo-lhes viagens ao estrangeiro.
     O meu condutor, homem feliz na ocasião, tinha acabado de dar uma volta ao mundo juntamente com o empresário, seu patrão. De Paquete e com tudo pago…
     Apreciou a minha perspectiva de viajante, vangloriando-se de ter feito uma viagem maior!
     Apeio-me à entrada de Bilene, e sem demoras, corro para o arvoredo para me aliviar do mal-estar. As comidas eram outras e o caril volteou-me o estômago!… Enfim, livre do azedume, avisto a vila e os arredores cheios de encanto e de cor.
     Bilene, pelo que me lembro, possuía dois tipos de lagoas semelhantes nas cores à “Lagoa das sete cidades”, na ilha de S. Miguel. Aqui, uma das lagoas era de água doce – lagoa verde. A outra, de águas salgadas – a azul, apelidada de Uembje, separada do oceano Índico por uma estreita faixa de dunas.
Bilene - Lagoas Verde e a Azul
     Era a praia mais querida para o cidadão de Lourenço Marques. A ex-libris das praias daquela zona.
     Alguém escreveu que: “Havia algo de mágico e fascinante no mar que levava o homem a procurá-lo incessantemente quando necessitava de quebrar a rotina ou relaxar um pouco do ritmo alucinante da vida urbana”.
     A lagoa tem mais de vinte e sete quilómetros de extensão e a temperatura média das águas ronda os 30 graus. Aqui, desfrutava-se dum horizonte imenso e limpo que nos dava uma fugaz sensação de independência e liberdade. Maravilha, bem-estar, sossego – tudo dava para especular sobre a nossa própria existência… 

Rio Incomati
     Novo dia, outros rumos por finalizar, e em movimento, faço deslizar-me para a foz do rio Incomati, acompanhado de um casal de sul africanos naturais da cidade de Durban.
     Tanto rodesianos como sul africanos se dirigiam a Moçambique para passarem as suas férias. País de permeio, com alguma segurança principalmente nos distritos de Gaza e Lourenço Marques, com praias de encantar e com uma moeda convidativa – eis que às centenas se encaminhavam para apreciar este tipo de brisa.
     No meu inglês já meio esquecido, consegui trocar algumas frases relacionadas comigo, com eles, e com a situação da guerra colonial instalada. Memorizei uma pergunta que me fizeram nesse ano de viagem e cujo conteúdo se veio a revelar negativo alguns anos mais tarde. “Como está a situação de guerrilha nas vossas províncias de Angola e Moçambique?”.
     Casal simpático, viviam numa cidade de renome mais abaixo da ponta Moçambicana e possuíam uma loja de flores. Provavelmente, estarão deslocados noutra parte do mundo, tal qual a nossa população de África.
     Chegámos a Vila Luísa, local por mim desejado em conhecer.
     Sede da circunscrição administrativa de Marracuene, local histórico onde se deu a chamada “guerra de pacificação”, entre as tropas portuguesas comandadas por Mouzinho de Albuquerque e os nacionalistas sob a direcção do régulo Gungunhana. Acontecimento que remonta ao final do século XIX:
     A minha documentação indicava que deveria desfrutar de duas atracções turísticas: Os hipopótamos e crocodilos do rio e a praia da Macaneta.
     Vila Luísa, rainha do turismo de Moçambique!...
     Os Caminhos de Ferro de Moçambique, como promoção dos seus transportes ferroviários e rodoviários, contribuíam fortemente para o fluxo de turismo que ali já se verificava. Dispunha de duas embarcações de passageiros próprias para passeios no rio e as excursões eram diárias com a predominância se sul africanos e de tripulantes de navios que aportavam a Lourenço Marques. Tudo caprichava para que este lugar pudesse ser o mais atractivo, e assim se embelezaram pequenos recantos da vila. Delineou-se um bem localizado miradouro; os viveiros com as sebes bem aparadas; as pérgulas de begunvílias e trepadeiras alinhavadas; bancos e mesas envolvendo árvores frondosas; passeios e escadarias encosta abaixo; a dispersão dos bonitos aloés e das elegantes cicadaceas; jardins da Vila – tudo isto convidava a uma merenda à sombra das mafurreiras, saboreando uma galinha à cafreal ou, descansar… desfrutando a paisagem.
     Mas o que mais me encantou foi ver os hipopótamos numa viagem tradicional, de barco, e que se fazia pelo rio abaixo.
Rio Incomati
     A riqueza faunística do rio Incomati tornou-se no maior “charme” de Vila Luísa e mereceu o estatuto de protecção. No meio deste rio, existia uma pequena ilha, a Ilha dos Hipopótamos, e ao seu redor, concentrava-se um núcleo de três dezenas desses paquidermes. Observá-los fora de água, nas suas brincadeiras e por vezes nas lutas entre machos e escutar os cavernosos roncos característicos desta espécie, dava-nos a sensação única de que estávamos em África, no seio da vida animal ainda no seu verdadeiro estado selvagem!
     Parti para Lourenço Marques contente com a minha viagem por terras africanas na costa do Índico. Muito mais haveria para observar, sobretudo no Norte da Província porém, o tempo era escasso e a situação de guerrilha estava mais acesa do que em Angola.
     Era hora de partida. Regressar à outra costa, à costa Atlântica, à corrente fria de Benguela.
     Consultando o registo do meu roteiro, dei com estas indicações: Voo de Lourenço Marques para a Beira, dia 23 de Julho de 1973, Boeing 737 da Deta, hora e dez minutos de voo. Beira para Luanda, dia 29 do mesmo mês, DC – 6 da FAP, seis horas de viagem.
     A minha apresentação no AB-4 seria somente a 10 de Agosto e, neste permeio de tempo, ainda estaria para acontecer mais uma viagem ao Norte de Angola!...
     Tinha vindo para cumprir a minha missão militar, mas partiria com conhecimento alargado do continente africano, tanto quanto as minhas possibilidades!!!

 Até breve
VÍTOR  OLIVEIRA - OCART

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

LESTE DE ANGOLA - 22

“LESTE DE ANGOLA”
Memórias de um passado saudoso

DE ANGOLA A MOÇAMBIQUE –  1973

, posicionado no cruzamento de Inchope e com o intuito de rumar para Sul, começo a recear a falta de transporte. Poucas viaturas circulavam e a boleia tornava-se difícil de obter. 
O tempo passava, e nestas coordenadas o sol caía a pique com rapidez. Em meu redor apenas havia a savana sem vislumbre de habitação alguma. A minha ansiedade e preocupação aumentavam de minuto a minuto dando lugar a uma fértil e trágica imaginação. Onde e como iria pernoitar naquele dia se não
conseguisse boleia?! Era medonho pensar na existência de animais ferozes naquela zona ou, em saber qual o tipo de indígena ali sobrevivente, amigo ou, inimigo? Tudo era estranho para mim, e pela primeira vez, neste tipo de aventura, me senti desamparado e indefeso. 

Em Angola, tinha estado uma tarde inteira a pedir boleia e não consegui, mas tinha a pequena cidade de Quibala a dois passos. Aqui, matagal e com o céu a escurecer, sem viva alma por perto…que fazer? 
Eu estava provido dum pequeno revólver porém, o calibre era de fraca potência e a minha experiência de tiro situava-se na nulidade. Tornei-me pequenino… e rezei. 
Entretanto, vindo do mato por um atalho, cruza-se comigo um mestiço. Indaga-me, e aconselha a retirar-me das ervas que me rodeavam pois, segundo a informação dele, estavam infestadas de carraças. Tudo se encaminhava para me atormentar ainda mais, e nesta expectativa, não me deparei com o discernimento necessário para lhe ter solicitado guarida. Ele era para mim um desconhecido, e nesta incógnita, o meu pensamento balançava entre a boa e a má pessoa. Apenas me afastei do matagal, coloquei-me quase no centro da estrada, e numa última esperança, agito o dedo, a mão e os braços para impor a paragem dum veículo.
Lá longe, na minha direcção, avistei um camião enorme, e com ele, o respectivo atrelado. A carga tinha uma altura considerável, e no topo das folhas de chá, seguiam diversos trabalhadores negros. Avidamente, cruzo os braços numa solicitação derradeira e comovente e, por fim, para meu contentamento, sinto o rolar lento da viatura e uma voz forte que me interpela: “O que faz por aqui?”

A minha prece tinha sido atendida, o perigo ultrapassado e, eu, segui viagem comodamente junto do meu salvador. 
Homem de poucas falas, solitário em longas viagens por toda a Província Moçambicana, com milhares de quilómetros palmilhados por estradas tidas como perigosas, eis que este camionista já provinha de Vila Cabral, no extremo Norte, no seu caminhar constante para Lourenço Marques.   

Tal qual como tinha pressentido, a noite caiu logo após as primeiras milhas percorridas. Tinha-me safado de incrédulas afoitezas e, agora, rolando, rolando por aquela estrada infinita, conversava com o meu fiel apaziguador. Sozinhos no percurso desta via, começámos por dar com a presença de algumas sombras em movimento a par do nosso rodado. Animais que mais pareciam cavalos a galopar como que a tentarem superar a velocidade do camião. Calmamente, o condutor que só via estrada, me pergunta: “sabe que animais são aqueles?”. Atónito, vim a saber que se tratavam de leões…, … e após um leão, vieram outros, e ainda não se tinham percorridos muitos quilómetros do tal cruzamento de Inchope!...
Por isso, ainda mantenho pesadelos causados nesta malfadada viagem.
Com o desenrolar da noite o ar arrefece bruscamente. Tirei uma toalha da mochila e cobri as pernas pois, era o único agasalho que possuía. O tempo ia passando, o
percurso ia-se fazendo e o zumbido do motor mantinha-se uníssono. Tudo se envolvia em movimento, movimento nocturno em que tudo parecia ritmado. 
     Num preciso momento, o motorista abranda a velocidade e pára o camião sem que eu me aperceba sobre alguma situação anómala. Apenas me informa que tinha acabado de esfolar um coelho, e que pela forma como o tinha feito ainda se aproveitava algo do animal. Um dos ajudantes desce da carga de chá e com a acostumada rapidez recolhe o coelho para lhe servir de almoço numa próxima oportunidade. E esta paragem não foi a única do género e os coelhos aglomeraram-se em prol de todos os ocupantes.
     Desde o cruzamento de Inchope até Ilhambane somavam-se centenas de quilómetros. A viagem alongava-se pela noite fora e o camião marchava pela estrada como se fosse de condução automática. O motor marcava o andamento de forma uniforme fazendo-se ouvir pela floresta adentro.
Amparado em mim tentava perscrutar a escuridão por entre as movimentadas árvores. Os leões sumiram-se nos seus sonhos e tudo parecia estático. De repente, agacho-me na cabine tentando proteger-me com a mochila. Ouvi um estrondo forte, potente como se fosse uma bomba… e pensei naquela guerra que o exército combatia. Ataque? E eu que nunca tinha dado um tiro, nem sofrido emboscada alguma!
A máquina abrandava, e a voz do camionista fez-se ouvir. Simplesmente, com esta frase:
“foi um pneu que rebentou, nada mais”.
Parados no meio da estrada, com a calma acostumada desta gente, saltam os trabalhadores do topo da carga e tratam da substituição do pneu rebentado. 

Lá fora, junto à porta da cabine, receoso pela aproximação de algum animal feroz, ouço o “guinchar” dos animalescos da floresta, situação incómoda, e não menos aterradora. Na escuridão, no meio do nada, tudo grita e assusta. Para quem nunca viveu uma experiência semelhante, o momento não era fácil.

Havia que partir, galgar distância. Substituído o pneu, seguimos viagem sempre direccionada a Sul. Pelo caminho, fui informado sobre o motivo da nossa brusca paragem. Fricção sobre fricção. O calor produzido pela rodagem do pneu sobrecarregado, causou dano ao mais frágil. Não foi a primeira vez e, outras haveriam de acontecer. 
O raiar do dia já se avizinhava. O nascer do sol, sempre apreciado em terras de África, surgia bem cedo e com uma força de luz de elevada densidade e calor. 
Nunca tinha percorrido tamanha distância dum só lance. Cansava ser motorista nestas paragens do velho continente. 
Mais uma vez o camião estacou. Mais um rebentamento de pneu e, desta, sem solução imediata. Mais um monocórdio ditado pelo meu condutor: “A si, compete-lhe seguir viagem solicitando outra boleia. Eu, terei que encomendar outro pneu da localidade mais próxima. Faça boa viagem e com melhor sorte”. Foi pronunciado um adeus – para não o ver mais até hoje. Contudo, relembro-o muitas vezes com eterno agradecimento. Tinha-me salvado dum certo isolamento…
Nestes lugares, já pertinho da cidade chamada de “Terra da Boa Gente” e com o avolumar do movimento em estrada, permitiu-se-me a cedência doutra boleia e de forma fugaz. Num turismo, sou conduzido até ao redor da cidade de Inhambane, e ainda no alvorecer, com a cidade por acordar, coloco os pés junto ao areal duma praia. Com uma súbita despedida, apresso os passos porque, pressinto uma intensa necessidade fisiológica. Numa barreira pouco escondida, língua de terra finíssima devido à maré cheia, espanto os milhares de caranguejos para poder reservar terreno aberto às minhas
“pressões”. Estes, incomodados com a minha presença e perseverança, lentamente se afastam amontoando-se uns por cima dos outros, e tantos, tantos eram, que faziam um barulho estaladiço nas suas andanças. Eu, só queria ter o alívio apaziguado por breves minutos! Assim foi, assim me tratei, e curioso fotografei a praia para provar aos incrédulos que os caranguejos eram mais que os grãos de areia. 

Despido, vestido, e na vigília do acto, analisei que possuía pequenas carraças agarradas às minhas pernas. O mestiço sempre tinha razão. O matagal estava infestado de parasitas, e eu fui simplesmente o veículo do seu transporte para outras paragens. 
Mais um susto. A aventura estava a tornar-se incontrolável. A mordedura de uma carraça poderia criar-me graves problemas, e eu não conhecia alguém amiga por perto.
Tencionando permanecer por alguns dias nestas paragens paradisíacas (Inhambane, Maxixe, Praia do Tofo, Miramar), resolvi arrendar um quarto numa pensão económica. E de imediato tomei um prolongado banho utilizando a pequena farmácia que sempre me acompanhava. Desinfectei todo o corpo para me precaver contra a doença de Lyme.
Inhambane, “Terra da Boa Gente”, capital da Província Moçambicana do mesmo nome. No lado oposto da cidade encontra-se Maxixe, e no permeio, localiza-se uma linda baía. A margem oriental da península é uma extensa costa de praias pertencentes ao oceano Índico, e a que mais me recordo pela sua beleza – é a praia do Tofo. 

Nesta cidade, olhando pelo vasto palmar de coqueiros, um dos mais vastos do Mundo, tento visualizar Vasco da Gama a atracar junto à baía que se estende à minha frente. 
Foi em Janeiro de 1498, há 475 anos. Na época, construiu-se uma feitoria que foi fortificada em 1546, mas apenas foi definitivamente ocupada por Portugal em 1731. Em 1763, com a construção do Forte da Nossa Senhora da Conceição, recebeu o estatuto de vila e sede de concelho. Foi atacada por franceses e holandeses, tendo sido saqueada em 1796 por piratas franceses da Ilha da Reunião. Foi elevada à categoria de cidade a 12 de Agosto de 1956.

Depois duma visita pela pequena cidade, percorri de barco parte da baía circundante. Em todas as margens se avistavam coqueiros gigantes curvados junto às ondinhas do mar. O azul nítido das águas contrastava com a fina e alva areia destas zonas turísticas. O barco com características remotas, apelidava-se de “Dhow” e era uma embarcação com raízes árabes. Deslocava-se por meio da vela e com a ajuda de remos, e os seus ocupantes, dóceis indígenas locais, remavam com elevada simpatia mostrando nos seus sorrisos os seus dentes amarelecidos de tanto coco comerem.   

Dados do censo agro-pecuário realizado em 1974 indicavam que a Província de Inhambane possuía um palmar com 48 milhões de coqueiros. 
A um passo, mais à frente, surgia a encantadora praia do Tofo. Extenso areal branco, entremeado com o verde palmar de coqueiros e a densa água, suavidade ondulante de um azul turquesa. Tudo combinava para me espraiar e absorver aquela beleza de costa africana privilegiada do oceano Índico.

Do Tofo, parti para a praia da Barra, em Miramar. Daí, desfrutei dum pôr de sol esbatido a ouro sobre um pacífico horizonte. Encontrava-me no outro lado do Mundo… 

Muito mais praias iria descobrir, e estas, ainda muito afamadas nos dias que correm. 
Chongoene, Xai-Xai, Vilanculos, João Belo, S. Martinho do Bilene, Vila Luísa, etc. 
Tudo será narrado numa próxima crónica para dar continuidade ao meu roteiro “milenar”.
 
Até breve
VÍTOR OLIVEIRA - OCART