quinta-feira, 14 de julho de 2011

LESTE DE ANGOLA - 21

“LESTE DE ANGOLA”

Memórias de um passado saudoso

DE ANGOLA A MOÇAMBIQUE –  1973


     Depois de asseguradas as passagens de regresso a Angola pelo Comando da FAP instalado em Lourenço Marques – (circunstância que teria de tratar para evitar despesas avultadas a meu cargo pois, os voos nesta aventura de férias somavam-se em sete), eis que solicito uma boleia aérea ao piloto Tenente Martinho, e num “C-47”, tomo o rumo à Beira num percurso de quase três horas.
     Hospedado no “Bucelato”, “hotel” da FAP, na Beira, logo contacto com os colegas a fim de indagar a evolução da guerrilha na parte central do território. A minha intenção seria percorrer o caminho direccionado à Rodésia posto que, o Norte de Moçambique já tinha ficado fora de perspectiva por falta de transporte aéreo.
     No início, era de minha intenção visitar Quelimane, Nampula, Nacala e a Ilha de Moçambique porém, devido ao agravamento da guerra por terras da Gorongosa, a marcha terrestre tornava-se insegura… Assim, a 10 de Julho de 1973, tomo como destino a fronteira da Rodésia, e numa primeira etapa, consigo uma boleia para a localidade do Dondo.
     Na viatura, dou largas a uma conversa simpática com o meu interlocutor, engenheiro agrónomo, pessoa afável e interessada em saber sobre o meu propósito em terras do Índico. Satisfeito na sua curiosidade e por saber estar na presença dum militar doutras paragens, de imediato se ofereceu para me mostrar a fábrica açucareira que dirigia. Isto, quando chegássemos ao destino proposto.
     Em Mafambisse, lugar pouco distante do Dondo, assisti a todas as etapas da transformação da cana-de-açúcar até à obtenção do produto final – açúcar refinado e alourado. No presente, tomei conhecimento de que esta açucareira, financiada com capital estrangeiro, ainda se encontra em laboração produzindo cerca de sessenta mil toneladas de açúcar por ano, explora uma área de dez mil hectares de cana sacarina, emprega cinco mil trabalhadores que estão afectos na ocupação de limpeza dos campos de produção, controlo e irrigação até à queima, corte e transporte da cana. Todos estes contactos ocasionais serviram para me enriquecerem nas múltiplas localidades por onde passei. Pessoas que jamais encontrarei na minha vida!
     Do Dondo a Vila Pery , hoje, Chimoio, capital da província de Manica, eram poucos os quilómetros, e mais uma vez, me coloquei na berma esquerda da estrada para solicitar transporte. Direi esquerda, porque a condução era efectuada pelo lado contrário, à maneira inglesa, e que por sinal ainda se mantém assim nos dias presentes. A boleia, essa maneira de viajar, ficou-me no corpo aquando estudante em Leiria. Foram seis anos de treino que assentou por longos anos.
     Seguiram-se momentos de alguma apreensão enquanto viajava por estas paragens. Havia indícios de que esta via de comunicação, a principal para o escoamento do interior do país, se estava a tornar belicosa e o percurso ainda não se encontrava protegido com coluna militar à semelhança de outras regiões idênticas.
     Enfim, mais uma viagem haveria de seguir, e desta, com um casal que vivia na Vila Gouveia, povoação localizada para os lados de Tete, cidade onde a nossa Força Aérea mantinha o Aeródromo Base nº. 7, com a sua frota de aviões de reacção “Fiat´s” para protegerem a célebre barragem de “Cabora Bassa”, ainda em construção, e as fronteiras longínquas e imensas do lago Niassa.
     Após longa conversa com este casal, constatei o fundamento dos meus receios. Já cautelosos, prosseguiam viagem por estas paragens munidas de armamento e acompanhados de outros transeuntes. 
     Sempre atento às diferenças que o Continente Negro me pudesse ofertar, notei pelo caminho um bando de macacos de raça babuína - animais perigosos quando se sentem ameaçados. O meu desejo de obter uns “slides” e fotos para testemunhar as aventuras por tais paragens, levou com que o condutor parasse o “jeep”. Com a aproximação ao bando, fui informado para seguir na retaguarda porquanto, estes primatas, praticavam uma estratégia de defesa e ataque comuns ao “clan”. Os machos dominantes arreganham os dentes e posicionam-se entre o suposto inimigo e as fêmeas e os filhotes. Quando atravessam uma área aberta, geralmente andam em formação – as fêmeas e os filhotes no centro e os machos mais fortes em volta.
     Simplesmente o que nos aconteceu foi termos que fugir, mesmos após disparados uns tiros para o ar pois, fomos acossados por umas valentes pedradas arremessadas com peritagem, não fossem estes animais os prováveis antecessores dos humanos! …   
     Vista repentina pela Vila Pery, logo se seguiu a caminhada até à fronteira ao encontro do meu destino mais imediato, a vila Manica. Não fosse o tratado de Berlim, poderia seguir viagem por território português até à costa Angolana. Mas não, aqui parei porque os ingleses mandaram mais.
     Pé ante pé, entrei na vila e subitamente avistei uma Capela encimada numa colina. Representou-se com vincado simbolismo e apelou-me à saudade do meu “puto”. De escadaria íngreme e demorosa, afoitei-me a calcorreá-la. Lá de cima, avistei com facilidade toda a pequena extensão do casario que formava uma comunidade íntegra e familiar que após a independência se viria a dispersar pelos quatro cantos do Mundo.
      Foi nesta povoação que ocasionalmente teria que fazer mais um amigo.
     Faço o reparo de que quando estava para partir de Angola, um colega de H. de Carvalho, Sargento no administrativo da secretaria do Comando, de nome Guerreiro, me tinha solicitado para levar uma recordação para os sogros que viviam em Manica. Prontifiquei-me a prestar-lhe esse pedido porém, a hora de partida aconteceu, e o companheiro silenciou-se por razões alheias.
     Tão longe me encontrava, sem conhecer alguém, pensei em deparar-me com o tal “padeiro” que o Guerreiro tinha como parente. Percorridas as ruas por diversas vezes, porque a vila era pequena, logo encontrei uma padaria – a única da localidade. Cautelosamente, dirigi-me à senhora que fazia o atendimento e perguntei se era a proprietária do estabelecimento em causa. Respondendo afirmativamente, avancei com mais umas perguntas a fim de confirmar as ligações familiares, e tal foi o nosso espanto quando nos unimos com o interesse comum. Ela, era a mãe da esposa do Guerreiro, e eu, tornava-me o mensageiro das duas famílias. Levei-lhe as novidades de Angola e recolhi a mensagem de Moçambique para transmissão ao colega, seu genro.
     Senti-me entristecido por ver a reacção do amigo Guerreiro quando voltei da viagem e lhe transmiti o contacto e vivência que tinha tido com os seus sogros. Notei, que à última da hora, quando parti, ele não tinha confiado plenamente nos meus cuidados, e o presente tinha ficado em terra. 
     Mais tarde, quando fui desmobilizado, solicitou-me para lhe transferir alguns dinheiros que tinha amealhado na sua comissão em Angola. Nesta altura, a confiança tornou-se reforçada.
CAPELA DA VILA DE MANICA
      Voltando a Manica, direi que tinha ganho a confiança desta nova “família” que desde o primeiro instante se ofereceram para me alojarem no seu lar durante a minha curta permanência nestas paragens. Desta feita, o marido acompanhou-me pela cidade servindo de cicerone. Fomos até à fronteira da Rodésia, local onde diariamente ia fazer a venda do pão, e tentou ultrapassar comigo os limites fronteiriços, até à cidade próxima de Untali. Essa possibilidade tornou-se infrutífera devido à necessidade duma autorização militar que o exército teimou em não passar. O passaporte em si, não chegava para cruzar a fronteira. Poderia desertar após dois anos de comissão feita…
SERRA DE VUMBA
     Com conhecimentos adquiridos previamente aquando da minha preparação de viagem sobre a existência de diversas grutas com  pinturas rupestres situadas nas redondezas da Serra de Vumba, pedi ao meu amigo padeiro para me acompanhar numa visita de exploração ao local pré-histórico. Deixámos a estrada principal, quando regressávamos da fronteira, e trepámos com alguma dificuldade o Monte Chinhamapere, localizando as referidas pinturas, as quais representavam dançarinos e guerreiros, munidos de arcos e flechas, todos empenhados na dança. Bosquímanos e negróides bantos, todos se combinavam numa dança desigual para cada dançarino, determinando por esta forma, o seu estatuto já no passado.
PINTURAS RUPESTRES


 
Descemos a Serra, já cansados e com as calças esfarrapadas. Aparecemos em casa com o aspecto de foragidos, mas com a alegria retratada no rosto por termos conseguido ver e sentir alguma presença de vestígios daqueles que foram os nossos ascendentes mais directos – os “Astralopithecus africanus”.
     A província de Manica é uma das mais elevadas do país, e para meu espanto, desconhecendo a razão para a época, deparei-me com plantações de pessegueiros e laranjeiras nas savanas vizinhas. Ao ver estas árvores numa parte distante de África, iludi-me por momentos de que pudesse estar no meu “puto”. Fiquei surpreendido com este facto e relembrei uma pequena passagem por altura das minhas idas a Luanda. Sim, no mercado da “Maria da Fonte”, quando visitava as vendedoras de fruta, olhava com melancolia e saudade as frutas do meu país. Uma vez, uma vendedeira, vendo a minha expressão com sentido de distanciamento, carinhosamente, colocou-me uma belíssima maçã nas minhas mãos, e disse: “Rapaz, mate essa saudade que sente, em comer este fruto da sua terra Natal”. 
Família em V. Manica
     Tudo acometia à saudade, nessa nossa juventude e em paragens virgens e distanciadas.
     No momento, encontrava-me a duzentos quilómetros do litoral (Beira), e a mil e cem quilómetros de Lourenço Marques (Maputo). Estava na hora de voltar, de me despedir dos amigos de Manica e transportar os seus cumprimentos para Saurimo.
     Parto de retorno a Vila Pery (Chimoio), e agora, na companhia dum outro viajante incansável. Um americano, que de mochila às costas, tal e qual como eu, se encontrava nestas bandas após ter percorrido toda a costa ocidental de África. Seguia para a Tanzânia e afirmou-me que o Continente Africano continha mais aventura em ser percorrido. Existia mais “POWER” nas suas selvas e savanas.
     O nosso condutor, indiano de gema, conduzia-nos mais uma vez pela tal estrada perigosa. Eu, o americano e, o asiático. Numa das bermas passámos por um indígena armado. O nosso temor avolumava-se. Seria já algum batedor inimigo?!
     Estaco a meio do percurso aproveitando o cruzamento para Ilhambane, perto de Inchope, e aqui, isolado e no matagal, tento em vão a boleia com destino ao Sul. Zona desconhecida, sem cubatas por perto, com a aproximação da noite, receoso em encontrar animais ferozes, guerrilheiros, perigo eminente, causou-me uns arrepios que ainda hoje sonho com semelhante situação.
     No Google Earth, verifiquei que na actualidade, esse cruzamento ainda se encontra despido de presença humana e situa-se nas vizinhanças do Parque da Gorongosa. Sujeitei-me a ver finalizada a minha comissão…   

Até breve
VÍTOR OLIVEIRA - OCART