segunda-feira, 12 de setembro de 2011

LESTE DE ANGOLA - 22

“LESTE DE ANGOLA”
Memórias de um passado saudoso

DE ANGOLA A MOÇAMBIQUE –  1973

, posicionado no cruzamento de Inchope e com o intuito de rumar para Sul, começo a recear a falta de transporte. Poucas viaturas circulavam e a boleia tornava-se difícil de obter. 
O tempo passava, e nestas coordenadas o sol caía a pique com rapidez. Em meu redor apenas havia a savana sem vislumbre de habitação alguma. A minha ansiedade e preocupação aumentavam de minuto a minuto dando lugar a uma fértil e trágica imaginação. Onde e como iria pernoitar naquele dia se não
conseguisse boleia?! Era medonho pensar na existência de animais ferozes naquela zona ou, em saber qual o tipo de indígena ali sobrevivente, amigo ou, inimigo? Tudo era estranho para mim, e pela primeira vez, neste tipo de aventura, me senti desamparado e indefeso. 

Em Angola, tinha estado uma tarde inteira a pedir boleia e não consegui, mas tinha a pequena cidade de Quibala a dois passos. Aqui, matagal e com o céu a escurecer, sem viva alma por perto…que fazer? 
Eu estava provido dum pequeno revólver porém, o calibre era de fraca potência e a minha experiência de tiro situava-se na nulidade. Tornei-me pequenino… e rezei. 
Entretanto, vindo do mato por um atalho, cruza-se comigo um mestiço. Indaga-me, e aconselha a retirar-me das ervas que me rodeavam pois, segundo a informação dele, estavam infestadas de carraças. Tudo se encaminhava para me atormentar ainda mais, e nesta expectativa, não me deparei com o discernimento necessário para lhe ter solicitado guarida. Ele era para mim um desconhecido, e nesta incógnita, o meu pensamento balançava entre a boa e a má pessoa. Apenas me afastei do matagal, coloquei-me quase no centro da estrada, e numa última esperança, agito o dedo, a mão e os braços para impor a paragem dum veículo.
Lá longe, na minha direcção, avistei um camião enorme, e com ele, o respectivo atrelado. A carga tinha uma altura considerável, e no topo das folhas de chá, seguiam diversos trabalhadores negros. Avidamente, cruzo os braços numa solicitação derradeira e comovente e, por fim, para meu contentamento, sinto o rolar lento da viatura e uma voz forte que me interpela: “O que faz por aqui?”

A minha prece tinha sido atendida, o perigo ultrapassado e, eu, segui viagem comodamente junto do meu salvador. 
Homem de poucas falas, solitário em longas viagens por toda a Província Moçambicana, com milhares de quilómetros palmilhados por estradas tidas como perigosas, eis que este camionista já provinha de Vila Cabral, no extremo Norte, no seu caminhar constante para Lourenço Marques.   

Tal qual como tinha pressentido, a noite caiu logo após as primeiras milhas percorridas. Tinha-me safado de incrédulas afoitezas e, agora, rolando, rolando por aquela estrada infinita, conversava com o meu fiel apaziguador. Sozinhos no percurso desta via, começámos por dar com a presença de algumas sombras em movimento a par do nosso rodado. Animais que mais pareciam cavalos a galopar como que a tentarem superar a velocidade do camião. Calmamente, o condutor que só via estrada, me pergunta: “sabe que animais são aqueles?”. Atónito, vim a saber que se tratavam de leões…, … e após um leão, vieram outros, e ainda não se tinham percorridos muitos quilómetros do tal cruzamento de Inchope!...
Por isso, ainda mantenho pesadelos causados nesta malfadada viagem.
Com o desenrolar da noite o ar arrefece bruscamente. Tirei uma toalha da mochila e cobri as pernas pois, era o único agasalho que possuía. O tempo ia passando, o
percurso ia-se fazendo e o zumbido do motor mantinha-se uníssono. Tudo se envolvia em movimento, movimento nocturno em que tudo parecia ritmado. 
     Num preciso momento, o motorista abranda a velocidade e pára o camião sem que eu me aperceba sobre alguma situação anómala. Apenas me informa que tinha acabado de esfolar um coelho, e que pela forma como o tinha feito ainda se aproveitava algo do animal. Um dos ajudantes desce da carga de chá e com a acostumada rapidez recolhe o coelho para lhe servir de almoço numa próxima oportunidade. E esta paragem não foi a única do género e os coelhos aglomeraram-se em prol de todos os ocupantes.
     Desde o cruzamento de Inchope até Ilhambane somavam-se centenas de quilómetros. A viagem alongava-se pela noite fora e o camião marchava pela estrada como se fosse de condução automática. O motor marcava o andamento de forma uniforme fazendo-se ouvir pela floresta adentro.
Amparado em mim tentava perscrutar a escuridão por entre as movimentadas árvores. Os leões sumiram-se nos seus sonhos e tudo parecia estático. De repente, agacho-me na cabine tentando proteger-me com a mochila. Ouvi um estrondo forte, potente como se fosse uma bomba… e pensei naquela guerra que o exército combatia. Ataque? E eu que nunca tinha dado um tiro, nem sofrido emboscada alguma!
A máquina abrandava, e a voz do camionista fez-se ouvir. Simplesmente, com esta frase:
“foi um pneu que rebentou, nada mais”.
Parados no meio da estrada, com a calma acostumada desta gente, saltam os trabalhadores do topo da carga e tratam da substituição do pneu rebentado. 

Lá fora, junto à porta da cabine, receoso pela aproximação de algum animal feroz, ouço o “guinchar” dos animalescos da floresta, situação incómoda, e não menos aterradora. Na escuridão, no meio do nada, tudo grita e assusta. Para quem nunca viveu uma experiência semelhante, o momento não era fácil.

Havia que partir, galgar distância. Substituído o pneu, seguimos viagem sempre direccionada a Sul. Pelo caminho, fui informado sobre o motivo da nossa brusca paragem. Fricção sobre fricção. O calor produzido pela rodagem do pneu sobrecarregado, causou dano ao mais frágil. Não foi a primeira vez e, outras haveriam de acontecer. 
O raiar do dia já se avizinhava. O nascer do sol, sempre apreciado em terras de África, surgia bem cedo e com uma força de luz de elevada densidade e calor. 
Nunca tinha percorrido tamanha distância dum só lance. Cansava ser motorista nestas paragens do velho continente. 
Mais uma vez o camião estacou. Mais um rebentamento de pneu e, desta, sem solução imediata. Mais um monocórdio ditado pelo meu condutor: “A si, compete-lhe seguir viagem solicitando outra boleia. Eu, terei que encomendar outro pneu da localidade mais próxima. Faça boa viagem e com melhor sorte”. Foi pronunciado um adeus – para não o ver mais até hoje. Contudo, relembro-o muitas vezes com eterno agradecimento. Tinha-me salvado dum certo isolamento…
Nestes lugares, já pertinho da cidade chamada de “Terra da Boa Gente” e com o avolumar do movimento em estrada, permitiu-se-me a cedência doutra boleia e de forma fugaz. Num turismo, sou conduzido até ao redor da cidade de Inhambane, e ainda no alvorecer, com a cidade por acordar, coloco os pés junto ao areal duma praia. Com uma súbita despedida, apresso os passos porque, pressinto uma intensa necessidade fisiológica. Numa barreira pouco escondida, língua de terra finíssima devido à maré cheia, espanto os milhares de caranguejos para poder reservar terreno aberto às minhas
“pressões”. Estes, incomodados com a minha presença e perseverança, lentamente se afastam amontoando-se uns por cima dos outros, e tantos, tantos eram, que faziam um barulho estaladiço nas suas andanças. Eu, só queria ter o alívio apaziguado por breves minutos! Assim foi, assim me tratei, e curioso fotografei a praia para provar aos incrédulos que os caranguejos eram mais que os grãos de areia. 

Despido, vestido, e na vigília do acto, analisei que possuía pequenas carraças agarradas às minhas pernas. O mestiço sempre tinha razão. O matagal estava infestado de parasitas, e eu fui simplesmente o veículo do seu transporte para outras paragens. 
Mais um susto. A aventura estava a tornar-se incontrolável. A mordedura de uma carraça poderia criar-me graves problemas, e eu não conhecia alguém amiga por perto.
Tencionando permanecer por alguns dias nestas paragens paradisíacas (Inhambane, Maxixe, Praia do Tofo, Miramar), resolvi arrendar um quarto numa pensão económica. E de imediato tomei um prolongado banho utilizando a pequena farmácia que sempre me acompanhava. Desinfectei todo o corpo para me precaver contra a doença de Lyme.
Inhambane, “Terra da Boa Gente”, capital da Província Moçambicana do mesmo nome. No lado oposto da cidade encontra-se Maxixe, e no permeio, localiza-se uma linda baía. A margem oriental da península é uma extensa costa de praias pertencentes ao oceano Índico, e a que mais me recordo pela sua beleza – é a praia do Tofo. 

Nesta cidade, olhando pelo vasto palmar de coqueiros, um dos mais vastos do Mundo, tento visualizar Vasco da Gama a atracar junto à baía que se estende à minha frente. 
Foi em Janeiro de 1498, há 475 anos. Na época, construiu-se uma feitoria que foi fortificada em 1546, mas apenas foi definitivamente ocupada por Portugal em 1731. Em 1763, com a construção do Forte da Nossa Senhora da Conceição, recebeu o estatuto de vila e sede de concelho. Foi atacada por franceses e holandeses, tendo sido saqueada em 1796 por piratas franceses da Ilha da Reunião. Foi elevada à categoria de cidade a 12 de Agosto de 1956.

Depois duma visita pela pequena cidade, percorri de barco parte da baía circundante. Em todas as margens se avistavam coqueiros gigantes curvados junto às ondinhas do mar. O azul nítido das águas contrastava com a fina e alva areia destas zonas turísticas. O barco com características remotas, apelidava-se de “Dhow” e era uma embarcação com raízes árabes. Deslocava-se por meio da vela e com a ajuda de remos, e os seus ocupantes, dóceis indígenas locais, remavam com elevada simpatia mostrando nos seus sorrisos os seus dentes amarelecidos de tanto coco comerem.   

Dados do censo agro-pecuário realizado em 1974 indicavam que a Província de Inhambane possuía um palmar com 48 milhões de coqueiros. 
A um passo, mais à frente, surgia a encantadora praia do Tofo. Extenso areal branco, entremeado com o verde palmar de coqueiros e a densa água, suavidade ondulante de um azul turquesa. Tudo combinava para me espraiar e absorver aquela beleza de costa africana privilegiada do oceano Índico.

Do Tofo, parti para a praia da Barra, em Miramar. Daí, desfrutei dum pôr de sol esbatido a ouro sobre um pacífico horizonte. Encontrava-me no outro lado do Mundo… 

Muito mais praias iria descobrir, e estas, ainda muito afamadas nos dias que correm. 
Chongoene, Xai-Xai, Vilanculos, João Belo, S. Martinho do Bilene, Vila Luísa, etc. 
Tudo será narrado numa próxima crónica para dar continuidade ao meu roteiro “milenar”.
 
Até breve
VÍTOR OLIVEIRA - OCART