quinta-feira, 27 de outubro de 2011

LESTE DE ANGOLA - 23

“LESTE DE ANGOLA”
Memórias de um passado saudoso

DE ANGOLA A MOÇAMBIQUE – 1973

Do Tofo, parti para a praia da Barra, em Miramar. Daí, desfrutei dum pôr de sol esbatido a ouro sobre um pacífico horizonte. Encontrava-me no outro lado do Mundo…
     E, nesse mesmo lado, dei início a mais uma viagem à beira mar, conhecendo as pérolas do que são hoje as praias mais  visitadas pelos turistas, em Moçambique. Desta feita, e pela madrugada, parto noutra boleia na direcção da capital porém, era de meu interesse percorrer toda a língua costeira e visitar as famosas estâncias balneares.
     O condutor, pessoa radicada nestas paragens há imensos anos, era um descendente dum proprietário e fundador duma fábrica de descasque de arroz na pequeníssima Vila de Palmeira. No percurso, falou-me da sua vida, da labuta, e das origens do local onde viveu toda a sua geração.
     “Palmeira, povoação do distrito da Manhiça deve o seu nome à existência de uma espécie desse tipo de árvore junto à estrada, que sobrevive há muitos anos. E a importância de Palmeira, como Vila, derivou da existência duma fábrica de descasque e processamento de arroz produzido no regadio do Chokwé, no vale do Limpopo. A fábrica foi construída no início da década de quarenta e, essa Firma pertence ao meu pai”.
     Foram estas as palavras do meu companheiro e condutor, como que para iniciarmos a viagem.
     E assim continuou com outras narrações referentes ao lugar e às gentes destas paragens…
     “Meu pai chegou a Palmeira com vinte e sete anos quando tudo era inabitado. Foi ele que mandou edificar a fábrica de descasque de arroz após três anos da sua chegada à Província  Moçambicana, em 1937. Sobre a árvore (palmeira centenária), há indicação de ter sido uma das referências geodésicas do tempo  de Gago Coutinho pois, a placa junto deste “monumento" atesta que terá sido o ponto de orientação no reconhecimento da triangulação geodésica concebida e executada pelo célebre aviador, em 1906/08”.
     Por investigação recente, vim a saber que o pai deste meu interlocutor veio a falecer em 1992. A Firma continuou a ser gerida pelos seus filhos até à presente data. Na sua boa orientação, chegou a processar cerca de 21 000 toneladas de arroz na época dourada, há vinte e tantos anos atrás. Posteriormente, devido à guerra e à falência do Complexo Agro-Industrial do Limpopo, tudo começou para uma laboração mais reduzida. Contudo, ainda hoje emprega cerca de duzentos e cinquenta trabalhadores (fixos), aumentando o número em ocasiões especiais com outros trabalhadores eventuais.
Arrozal no Limpopo e fábrica de descasque do arroz
     E a velha palmeira morreu de acidente natural… em Agosto de 2004!...
     A Vila continuando pacata, com as suas casas perfiladas ao longo da estrada, transparece respirar de cansaço numa imobilidade eterna, e o casario morre na esperança de ser levado pela estrada que o serve.
     Essa palmeira, conhecida pelo marco da Estrada Nacional Número Um, sucumbiu pela força dos ventos fortes que se fizeram sentir na zona Sul do país. Era a palmeira que tinha dado o nome ao posto administrativo que hoje é conhecido e que era visível a grande distância para quem, vindo do Norte, se deslocava para a capital. Assim fiquei com o conhecimento histórico duma Vila, dum homem, duma família inteira e duma empresa situada no paralelo de Capricórnio.
     Agora, havia que seguir caminho fazendo um retrocesso até à praia de Chongoene, e de salto em salto, percorrer as praias circundantes, todas de raríssima beleza. 
Chongoene - Vila e a praia
     Por momentos deparo-me com uma das mais famosas – a praia Sepúlveda, e desta pequena localidade, relembro histórias curiosas que me foram contadas por uma funcionária dos correios, numa altura em que dava despacho a uma carta para os meus pais, em Portugal.
     Contou-me ela de que estes mares eram infestados de tubarões perigosos. Frequentemente noticiavam-se acidentes constantes em que apareciam partes de corpos rolando na praia pelo efeito da ondulação. Contudo, havia um pequeno lago encravado numas rochas paralelas à língua de praia que protegendo o acesso directo ao mar permitia aos banhistas um descanso fora de perigo. Todo o veraneante vivia o dia-a-dia acostumado a banhar-se nessas águas pois, era o local mais protegido das redondezas e nunca se tinha constado qualquer ataque por parte dos tubarões.
Tubarão Tigre
Entretanto, junto à beira mar dava-se começo a umas obras que fariam a edificação dum enorme hotel, mas que necessitava de pedra para a construção dos alicerces. Pensaram que a forma mais fácil de resolver seria com a aquisição da pedra dinamitando o paredão situado no mar e que, com a maré baixa, se tornava acessível a extracção e transporte do material.
     Com a brecha causada no alinhamento do rochedo, as águas tornaram-se livres para o mar mais profundo dando acesso à penetração de algum tubarão mais atrevido.
     Passaram-se dias, e os banhistas, sem conhecimento do perigo eminente, tanto por não terem sido avisados, como pela habituação ao bem-estar náutico, continuaram na diversão do chapinhar nas águas daquela que viria a tornar-se na lagoa assassina. Sem contarem, esses peixes de porte gigantesco (tubarões tigre), duma ferocidade atroz, atacaram todas as pessoas ferindo e matando quanto puderam. 
Praia e hotel de Sepúlveda
     O Hotel acabou por se construir, mas o luto foi tanto que o próprio edifício se foi amortalhando num ápice.
     Noutra passagem macabra, dois rodesianos solicitaram a um especialista australiano na caça ao tubarão, a permissão de o acompanharem numa das suas saídas. Renitentemente, o australiano aceitou levá-los. Aconselhou-os a porem em prática todos os procedimentos por ele ditados no caso de serem visitados por tubarões. Ensinou-lhes todas as acções informando-os a executarem movimentos lentos, confiança, natação em grupo, posição frontal.
O bicho apareceu solitário. Enorme, monstro nunca visto tão pertinho dos rodesianos. Receosos do ataque, tomam a decisão de nadar com todas as forças para terra, deixando a sós o australiano.
Picada para Xai-Xai
     Este, tentando evitar a corrida do tubarão para com os outros amigos, depara-se com uma luta terrível com a fera. Debilitado, ainda consegue atingir a areia, mas com imensa dificuldade devido a inúmeros ferimentos. Após a primeira intervenção de socorro, sobrevive mesmo com a falta de dois membros (perna e braço), e com a zona estomacal perfurada. A população de Xai-Xai juntou-se e fizeram uma colheita de sangue para efeitos de transfusões diversas. Após a reabilitação, o estrangeiro parte para o seu país natal, e passado um ano, regressa à cidade de João Belo para agradecer a sua salvação. Desta, vinha com duas próteses, mas vivo de alegria.
     Sepúlveda pertence à capital de província de Xai-Xai, outrora, chamada de cidade de João Belo. 
     João Belo, nome de um antigo administrador português nascido em 1876 e falecido em 1928. Foi capitão-de-mar-e-guerra e desde cedo embarcou para Moçambique, integrando as campanhas dos Namarráis e de Gaza sob as ordens de Mouzinho de Albuquerque.
     Foi o responsável pelo levantamento hidrográfico da foz e barra do Limpopo, pela sua farolagem e balizagem e por diversas missões de estudo do vale do Limpopo. Em 1926 desempenhou o cargo de ministro das Colónias e foi governador em Moçambique.
     Xai-Xai, pelo seu nome, pensa-se derivar do régulo Languene, mais conhecido por Tchai-Tchai, e que governou na zona de Denguene.
     Antes da chegada dos portugueses, este lugar já era habitado pela tribo Nduandue, fundador do império de Gaza. Evoluiu a partir da criação dum porto fluvial, junto ao rio Limpopo, graças às trocas comerciais. A povoação foi reconhecida desde 1897 e denominada por “João Belo”. Em 1961, com a construção de um dique de defesa após as cheias de 1955 e a estrada Nacional nº. 1, em 1958, ganhando mais relevo, foi elevada à categoria de cidade – cidade de João Belo.
Praia de Bilene
     Os dias passavam e os fervores de conhecer outras estradas forçaram-me à movimentação. O plano estava traçado e o nome de S. Martinho de Bilene soava-me a conquista. Tomo o transporte de uma carrinha e, pelo aspecto do “chauffeur” denoto um rosto carregado de aventura. Troca-se conversa e da sua boca ainda recordo o conteúdo falado que tive com este novo amigo. Empregado numa indústria de plásticos, narra-me a situação política vivida na época. Seu patrão, industrial e rico, tomou este ramo de empresa como monopólio em Moçambique. Por influência política, qualquer tentativa extra, na criação de uma unidade fabril congénere e que não fosse de sua propriedade, morria à nascença. Apesar de tudo, beneficiava os seus colaboradores mais directos oferecendo-lhes viagens ao estrangeiro.
     O meu condutor, homem feliz na ocasião, tinha acabado de dar uma volta ao mundo juntamente com o empresário, seu patrão. De Paquete e com tudo pago…
     Apreciou a minha perspectiva de viajante, vangloriando-se de ter feito uma viagem maior!
     Apeio-me à entrada de Bilene, e sem demoras, corro para o arvoredo para me aliviar do mal-estar. As comidas eram outras e o caril volteou-me o estômago!… Enfim, livre do azedume, avisto a vila e os arredores cheios de encanto e de cor.
     Bilene, pelo que me lembro, possuía dois tipos de lagoas semelhantes nas cores à “Lagoa das sete cidades”, na ilha de S. Miguel. Aqui, uma das lagoas era de água doce – lagoa verde. A outra, de águas salgadas – a azul, apelidada de Uembje, separada do oceano Índico por uma estreita faixa de dunas.
Bilene - Lagoas Verde e a Azul
     Era a praia mais querida para o cidadão de Lourenço Marques. A ex-libris das praias daquela zona.
     Alguém escreveu que: “Havia algo de mágico e fascinante no mar que levava o homem a procurá-lo incessantemente quando necessitava de quebrar a rotina ou relaxar um pouco do ritmo alucinante da vida urbana”.
     A lagoa tem mais de vinte e sete quilómetros de extensão e a temperatura média das águas ronda os 30 graus. Aqui, desfrutava-se dum horizonte imenso e limpo que nos dava uma fugaz sensação de independência e liberdade. Maravilha, bem-estar, sossego – tudo dava para especular sobre a nossa própria existência… 

Rio Incomati
     Novo dia, outros rumos por finalizar, e em movimento, faço deslizar-me para a foz do rio Incomati, acompanhado de um casal de sul africanos naturais da cidade de Durban.
     Tanto rodesianos como sul africanos se dirigiam a Moçambique para passarem as suas férias. País de permeio, com alguma segurança principalmente nos distritos de Gaza e Lourenço Marques, com praias de encantar e com uma moeda convidativa – eis que às centenas se encaminhavam para apreciar este tipo de brisa.
     No meu inglês já meio esquecido, consegui trocar algumas frases relacionadas comigo, com eles, e com a situação da guerra colonial instalada. Memorizei uma pergunta que me fizeram nesse ano de viagem e cujo conteúdo se veio a revelar negativo alguns anos mais tarde. “Como está a situação de guerrilha nas vossas províncias de Angola e Moçambique?”.
     Casal simpático, viviam numa cidade de renome mais abaixo da ponta Moçambicana e possuíam uma loja de flores. Provavelmente, estarão deslocados noutra parte do mundo, tal qual a nossa população de África.
     Chegámos a Vila Luísa, local por mim desejado em conhecer.
     Sede da circunscrição administrativa de Marracuene, local histórico onde se deu a chamada “guerra de pacificação”, entre as tropas portuguesas comandadas por Mouzinho de Albuquerque e os nacionalistas sob a direcção do régulo Gungunhana. Acontecimento que remonta ao final do século XIX:
     A minha documentação indicava que deveria desfrutar de duas atracções turísticas: Os hipopótamos e crocodilos do rio e a praia da Macaneta.
     Vila Luísa, rainha do turismo de Moçambique!...
     Os Caminhos de Ferro de Moçambique, como promoção dos seus transportes ferroviários e rodoviários, contribuíam fortemente para o fluxo de turismo que ali já se verificava. Dispunha de duas embarcações de passageiros próprias para passeios no rio e as excursões eram diárias com a predominância se sul africanos e de tripulantes de navios que aportavam a Lourenço Marques. Tudo caprichava para que este lugar pudesse ser o mais atractivo, e assim se embelezaram pequenos recantos da vila. Delineou-se um bem localizado miradouro; os viveiros com as sebes bem aparadas; as pérgulas de begunvílias e trepadeiras alinhavadas; bancos e mesas envolvendo árvores frondosas; passeios e escadarias encosta abaixo; a dispersão dos bonitos aloés e das elegantes cicadaceas; jardins da Vila – tudo isto convidava a uma merenda à sombra das mafurreiras, saboreando uma galinha à cafreal ou, descansar… desfrutando a paisagem.
     Mas o que mais me encantou foi ver os hipopótamos numa viagem tradicional, de barco, e que se fazia pelo rio abaixo.
Rio Incomati
     A riqueza faunística do rio Incomati tornou-se no maior “charme” de Vila Luísa e mereceu o estatuto de protecção. No meio deste rio, existia uma pequena ilha, a Ilha dos Hipopótamos, e ao seu redor, concentrava-se um núcleo de três dezenas desses paquidermes. Observá-los fora de água, nas suas brincadeiras e por vezes nas lutas entre machos e escutar os cavernosos roncos característicos desta espécie, dava-nos a sensação única de que estávamos em África, no seio da vida animal ainda no seu verdadeiro estado selvagem!
     Parti para Lourenço Marques contente com a minha viagem por terras africanas na costa do Índico. Muito mais haveria para observar, sobretudo no Norte da Província porém, o tempo era escasso e a situação de guerrilha estava mais acesa do que em Angola.
     Era hora de partida. Regressar à outra costa, à costa Atlântica, à corrente fria de Benguela.
     Consultando o registo do meu roteiro, dei com estas indicações: Voo de Lourenço Marques para a Beira, dia 23 de Julho de 1973, Boeing 737 da Deta, hora e dez minutos de voo. Beira para Luanda, dia 29 do mesmo mês, DC – 6 da FAP, seis horas de viagem.
     A minha apresentação no AB-4 seria somente a 10 de Agosto e, neste permeio de tempo, ainda estaria para acontecer mais uma viagem ao Norte de Angola!...
     Tinha vindo para cumprir a minha missão militar, mas partiria com conhecimento alargado do continente africano, tanto quanto as minhas possibilidades!!!

 Até breve
VÍTOR  OLIVEIRA - OCART