Quando-Cubango 1967
O Jornalista Emílio Felipe tomou a iniciativa de formar uma
equipe constituída por ele próprio. pelo Fotógrafo Raul Machado e por
mim, Operador de Cinema.
O objectivo era a quase ignorada Região do Quando-Cubango no extremo Sudeste de Angola, cerca de 2/3 da superfície de Portugal e confinante com o Iona, "Terras do Fim do Mundo" tão faladas quanto ignoradas. Aliás, alguns anos antes, uma equipa de Geólogos, e Meteorologistas, - seis Sábios - um Fotógrafo, o “Velho” Guimarães, e eu pelo Cinema, voáramos durante dois dias sobre aquela região, numa observação exaustiva fazendo o levantamento por quadrículas a fim de localizar um Vulcão que....não existia. Apenas um "aparelho antigo," no dizer dos Geólogos.
O objectivo era a quase ignorada Região do Quando-Cubango no extremo Sudeste de Angola, cerca de 2/3 da superfície de Portugal e confinante com o Iona, "Terras do Fim do Mundo" tão faladas quanto ignoradas. Aliás, alguns anos antes, uma equipa de Geólogos, e Meteorologistas, - seis Sábios - um Fotógrafo, o “Velho” Guimarães, e eu pelo Cinema, voáramos durante dois dias sobre aquela região, numa observação exaustiva fazendo o levantamento por quadrículas a fim de localizar um Vulcão que....não existia. Apenas um "aparelho antigo," no dizer dos Geólogos.
Porém, desta vez iríamos modestamente por terra, e sem levar
sábios. Contávamos trazer desta viagem o maior número possível de testemunhos
que pela Escrita, pelo Som e pela Imagem, nas vertentes paisagística, animal e,
acima de tudo Humana, pudessem contribuir para um melhor conhecimento daquela
Região.
Para levar a bom termo este processo, seria indispensável a concordância e o apoio material do Governador Geral. Nesse sentido o Emílio apresentou ,ao Coronel Rebocho Vaz, a equipe e o Plano de Trabalho. Este tinha como prioritário o contacto com o Povo Buchiman de que toda e gente falava, mas só "conhecia" pelos "estalidos" da linguagem, e ouvindo dizer que era de baixa estatura, tom de pele amarelada e olhos rasgados como os dos orientais. Esperávamos vir a ter experiências enriquecedoras, e tivé-mo-las. Inesquecíveis.
Tanto assim, que as estou recordando quatro décadas passadas. Mas ainda é cedo para falar disso. Por agora esperávamos pelo acordo do Governador Geral que não tardou a chegar.
Para levar a bom termo este processo, seria indispensável a concordância e o apoio material do Governador Geral. Nesse sentido o Emílio apresentou ,ao Coronel Rebocho Vaz, a equipe e o Plano de Trabalho. Este tinha como prioritário o contacto com o Povo Buchiman de que toda e gente falava, mas só "conhecia" pelos "estalidos" da linguagem, e ouvindo dizer que era de baixa estatura, tom de pele amarelada e olhos rasgados como os dos orientais. Esperávamos vir a ter experiências enriquecedoras, e tivé-mo-las. Inesquecíveis.
Povo Buchiman - foto de Raul Machado |
Tanto assim, que as estou recordando quatro décadas passadas. Mas ainda é cedo para falar disso. Por agora esperávamos pelo acordo do Governador Geral que não tardou a chegar.
Começou então, a tarefa de equipar um Jeep Land Rover, e a
primeira prioridade era um Emissor-Receptor na frequência da Tropa. Coisa
vedada a civis. Foi o primeiro obstáculo, que um telefonema do Coronel Rebocho
Vaz aos seus Camaradas logo ultrapassou. Ficou porém, como aviso para um outro
que nos esperava: a autorização dos Correios. Aqui começou a parte mais
desagradável e difícil da nossa missão: ultrapassar a "Burrocracia"
personificada num Chefe de Serviços, um desses sujeitos frustrados que,
incapazes de enfrentar e vencer as dificuldades próprias, preferem, criá-las
aos outros acoitados atrás das suas secretárias, ou da "barricada"
dos guichés. Fomos pois informados por ele de que só o Ministério em Lisboa
podia dar a autorização que pretendíamos. Objectámos que enquanto esperávamos
por ela, chegariam as chuvas que não dependiam do Ministério. A partir daí a
nossa missão tornar-se- ia impossível.
Naquela Região não se poderia andar uma dúzia de quilómetros antes do Cacimbo, Junho... do ano seguinte. Estávamos em fins de Agosto. Mas o homem foi peremptório: "Só Lisboa pode dar a Autorização”. Sugeriu-nos um P 19. Insistimos :"esse aparelho, toda a gente do mato tem, toda a gente ouve incluindo a Unita que já por ali andava". Sem a" autorizaçãosinha", (Óh Eça!) nada feito."
Foi esta barreira , que teve o condão de nos mostrar que a Burocracia não se combate e derrota frontalmente. Tão pouco ao mesmo nível. Tem de ser por "esmagamento" como na luta Greco-Romana, isto é, de cima para baixo, e sem "fair-play." Este foi um período que me custou escrever, mas não passa de uma constatação. Embora a contra gosto não nos restou outra alternativa. Aprendida a lição, subimos até ao Governador Geral que nos entregou um cartão dirigido informalmente ao "Meu Amigo", para entregarmos ao Director Geral dos Correios, um engenheiro cujo nome não consigo lembrar agora, e que o recebeu, leu, hesitou uns segundos e perguntou: "quem é este senhor que assina Camilo? "Ficámos atónitos, mas conseguimos dizer que era o nome próprio do G,G., Camilo Rebocho Vaz. Supomos que assinando,Camilo teria querido assinalar o carácter não oficial do pedido. O engenheiro, tartamudeando umas palavras: "claro" pois o Senhor"... mandou chamar o perempório Chefe dando-lhe instruções sobre como satisfazer a nossa pretensão com a maior urgência. " Sim Senhor, Senhor Director. Com certeza Senhor Engenheiro". E para nós: "os senhores podem, vir buscar o documento amanhã de manhã".(não terá sido capaz de articular - autorização -)
Na manhã seguinte, tão cedo que a repartição se encontrava quase deserta, dirigimo-nos para um gabinete de onde vinha o som do matraquear "gaguejante" de uma máquina de escrever. E lá estava ele, o ex-peremptório Chefe escrevendo com dois afanosos dedos a autorização que, poucas horas antes, teria de ser forçosamente pedida a Lisboa.
Naquela Região não se poderia andar uma dúzia de quilómetros antes do Cacimbo, Junho... do ano seguinte. Estávamos em fins de Agosto. Mas o homem foi peremptório: "Só Lisboa pode dar a Autorização”. Sugeriu-nos um P 19. Insistimos :"esse aparelho, toda a gente do mato tem, toda a gente ouve incluindo a Unita que já por ali andava". Sem a" autorizaçãosinha", (Óh Eça!) nada feito."
Foi esta barreira , que teve o condão de nos mostrar que a Burocracia não se combate e derrota frontalmente. Tão pouco ao mesmo nível. Tem de ser por "esmagamento" como na luta Greco-Romana, isto é, de cima para baixo, e sem "fair-play." Este foi um período que me custou escrever, mas não passa de uma constatação. Embora a contra gosto não nos restou outra alternativa. Aprendida a lição, subimos até ao Governador Geral que nos entregou um cartão dirigido informalmente ao "Meu Amigo", para entregarmos ao Director Geral dos Correios, um engenheiro cujo nome não consigo lembrar agora, e que o recebeu, leu, hesitou uns segundos e perguntou: "quem é este senhor que assina Camilo? "Ficámos atónitos, mas conseguimos dizer que era o nome próprio do G,G., Camilo Rebocho Vaz. Supomos que assinando,Camilo teria querido assinalar o carácter não oficial do pedido. O engenheiro, tartamudeando umas palavras: "claro" pois o Senhor"... mandou chamar o perempório Chefe dando-lhe instruções sobre como satisfazer a nossa pretensão com a maior urgência. " Sim Senhor, Senhor Director. Com certeza Senhor Engenheiro". E para nós: "os senhores podem, vir buscar o documento amanhã de manhã".(não terá sido capaz de articular - autorização -)
Na manhã seguinte, tão cedo que a repartição se encontrava quase deserta, dirigimo-nos para um gabinete de onde vinha o som do matraquear "gaguejante" de uma máquina de escrever. E lá estava ele, o ex-peremptório Chefe escrevendo com dois afanosos dedos a autorização que, poucas horas antes, teria de ser forçosamente pedida a Lisboa.
Podemos finalmente iniciar a viagem,mas antes de partir,
demo-nos o luxo de contratar um "cozinheiro", isto é, ele é que disse
que era.
E lá partimos e percorremos os 1050 quilómetros que nos separavam de Serpa Pinto (Menongue) Capital do Cuando Cubango, sem grande história se não pensarmos nos buracos da estrada. E foi já em pleno mato, e numa das poucas noites que passamos debaixo de telha, que mandámos o "cozinheiro" preparar arroz de coelho com o troféu caçado na véspera. O Raul disse-lhe: "olha que eu quero a cabeça". Ao almoço veio o arroz que não estava lá grande coisa mas que quebrava a dieta de enlatados dos dias anteriores. E lá o fomos comendo, e cuspindo os numerosos ossinhos que íamos encontrando. O Raul pediu ao "cozinheiro": "traz-me lá a cabeça" . " Mas a cabeça eu já fiz como o senhor mandou" Horror!... Tínhamos cuspido a cobertura mas comido o recheio. Foi aqui que descobrimos a fraude. Ele era daquela região e por portas travessas, soubera da nossa viagem e...conseguiu boleia para casa. Foi exonerado e o Raul que se jactava de ser bom cozinheiro e de fazer um ARROZ DOCE DIVINO, foi provido do cargo. E como nem tudo é sempre mau nesta vida, perdêramos um "cozinheiro", mas ganhámos uma espécie de guia/intérprete.
Serpa Pinto |
E lá partimos e percorremos os 1050 quilómetros que nos separavam de Serpa Pinto (Menongue) Capital do Cuando Cubango, sem grande história se não pensarmos nos buracos da estrada. E foi já em pleno mato, e numa das poucas noites que passamos debaixo de telha, que mandámos o "cozinheiro" preparar arroz de coelho com o troféu caçado na véspera. O Raul disse-lhe: "olha que eu quero a cabeça". Ao almoço veio o arroz que não estava lá grande coisa mas que quebrava a dieta de enlatados dos dias anteriores. E lá o fomos comendo, e cuspindo os numerosos ossinhos que íamos encontrando. O Raul pediu ao "cozinheiro": "traz-me lá a cabeça" . " Mas a cabeça eu já fiz como o senhor mandou" Horror!... Tínhamos cuspido a cobertura mas comido o recheio. Foi aqui que descobrimos a fraude. Ele era daquela região e por portas travessas, soubera da nossa viagem e...conseguiu boleia para casa. Foi exonerado e o Raul que se jactava de ser bom cozinheiro e de fazer um ARROZ DOCE DIVINO, foi provido do cargo. E como nem tudo é sempre mau nesta vida, perdêramos um "cozinheiro", mas ganhámos uma espécie de guia/intérprete.
Em Serpa Pinto fomos muito bem recebidos pelo Governador do
Distrito, Comandante Sousa Machado, pessoa extremamente simpática que nos deu
todas as ajudas de que precisámos. Como tivessemos manifestado interesse em ir
até Rivungo na margem direita do Cuando, na esquerda ficava a Zâmbia, deu-nos
algumas informações úteis mas não nos deixou ir de carro por não achar segura a
rota que teríamos de seguir. Assim fomos no avião do Governador. Do que se passou
daí para a frente, já fiz relato em "Luíana. "Continuo pois com o
"Arroz Doce" do Raul que ele, de vez em quando, esgrimia em defesa
das suas opiniões contrárias às nossas. "então se não concordam, não comem
Arroz Doce!".
Iniciamos as nossas operações pela região sabendo que mais dia menos dia encontraríamos os Buchimanes, Mucancalas ou Vassequeles. Este último nome é recusado por eles com nojo, porque significa "merda". Mucancalas não sei de onde vem, e Buchimanes vem da expressão inglesa Bushmen,"homens da mata". Eles dão a si próprios o nome de N'Kun, que quer dizer "homem", o que não deixa de ter a sua lógica.
"Escrevi N'kun conforme soa ao ouvido, mas sem o "clic que esta palavra contém". Ouvira repetidas vezes dizer em Luanda: "eles falam por estalidos". Ora segundo aquilo que observámos e ouvimos, pareceu-nos que os clics são palatais, e não palavras em si mesmo. Antes sons que umas palavras possuem e outras não, sendo que uma palavra com clic terá um significado e sem ele, terá outro. Aqui devo esclarecer que este ponto, não se baseia em qualquer "investigação" que nos transcenderia, mas no que por observação e escuta das gravações, nos pareceu plausível. Mas o curioso é que o clic não precede nem segue a palavra, mas "sai misturado" com ela. Os nossos esforços para os pronunciar. Aliás, dou-me conta agora que "pronunciar" não será a palavra adequada, posto que se trata apenas de um ruído a que chamamos "clic" como o produzido pelo de um pequeno fecho de mola. Não existem sílabas, não há movimento de lábios. Apenas um som estranho saído da boca de uma pessoa.
Iniciamos as nossas operações pela região sabendo que mais dia menos dia encontraríamos os Buchimanes, Mucancalas ou Vassequeles. Este último nome é recusado por eles com nojo, porque significa "merda". Mucancalas não sei de onde vem, e Buchimanes vem da expressão inglesa Bushmen,"homens da mata". Eles dão a si próprios o nome de N'Kun, que quer dizer "homem", o que não deixa de ter a sua lógica.
"Escrevi N'kun conforme soa ao ouvido, mas sem o "clic que esta palavra contém". Ouvira repetidas vezes dizer em Luanda: "eles falam por estalidos". Ora segundo aquilo que observámos e ouvimos, pareceu-nos que os clics são palatais, e não palavras em si mesmo. Antes sons que umas palavras possuem e outras não, sendo que uma palavra com clic terá um significado e sem ele, terá outro. Aqui devo esclarecer que este ponto, não se baseia em qualquer "investigação" que nos transcenderia, mas no que por observação e escuta das gravações, nos pareceu plausível. Mas o curioso é que o clic não precede nem segue a palavra, mas "sai misturado" com ela. Os nossos esforços para os pronunciar. Aliás, dou-me conta agora que "pronunciar" não será a palavra adequada, posto que se trata apenas de um ruído a que chamamos "clic" como o produzido pelo de um pequeno fecho de mola. Não existem sílabas, não há movimento de lábios. Apenas um som estranho saído da boca de uma pessoa.
Este Povo que comerá "bem" num terço do ano e com
certeza passa fome nos outros dois, é senhor de uma inesperada alegria, de uma
gargalhada fácil e, ouso dizer, de senso de humor. Como ficará, assim o julgo,
comprovado pelo seguinte episódio.
Pedi um arco e uma flecha que tentei atirar.
O material era rudimentar, rígido o arco e forte o esticador feito de pele
torcida, ou de uma qualquer planta. Temendo ficar mal visto, lançando a seta a
meia dúzia de metros, retesei o arco com quanta força tinha. Mas em vez de
puxar por cima do ombro direito, fi-lo em frente da cara. O aparelho rebentou e
eu preguei um valente e doloroso murro no nariz. Foi, como espectáculo, um
êxito clamoroso. Os risos as piruetas e os gestos mimando a minha desastrada
actuação, obrigaram-me a puxar pelo meu mal tratado senso de humor, a esquecer
a dor do meu igualmente mal tratado nariz, e a rir com eles, que já deviam
estar à espera do acontecimento.
Em todos os nossos posteriores encontros não deixavam de reviver a cena com mais risos e momices.
foto de Raul Machado |
Em todos os nossos posteriores encontros não deixavam de reviver a cena com mais risos e momices.
Foto de Raul Machado |
Portanto não irei mexer no relato, fica mesmo assim. Mas nunca deixaram de me impressionar: estas crianças que se tapavam com terra,. os que se embrulhavam num "cabriquito, tiritando de frio, ou os que dormiam em esteiras nos anexos das casas de seus patrões. Assim vivia o povo : buchimanes, ou "bantus".
Mas este “acampamento” como os que o precederam, mais os que
se lhe seguirão , está condenado a uma vida "efémera." Só irá durar o
tempo que levarem a esgotar...e a comer tudo o que, num raio previamente
determinado, tendo como centro os "iglus," a Natureza lhes der:
frutos, raízes, e as lagartas de certas árvores que ao que parece são ricas em
proteínas e que depois de torradas sabem a ginguba, segundo o testemunho dos
meus dois colegas que se atreveram a prová-las. Eu não tentei sequer. Creio que
posso chamar a esta relutância "síndroma do caracol". Talvez me
arriscasse se os não tivesse conhecido enquanto vivos, deixando atrás de um
corpo rastejante de lesma, um rasto brilhante como os que no Mar seguem os
grandes paquetes. Mas este rasto é peganhento, ranhoso, nojento. Também comiam
uns pequenos roedores, que aliás são seus concorrentes no consumo de frutos e
bagas das mesmas árvores em que vivem. Chamar-lhes-ia "ratos de
palmeira," se palmeiras houvesse por aqueles matos. Como não há, são ratos
"tout court" e isso corta-me o apetite.
Porque os Buchimanes são colectores, apenas isso. Não plantam o quer que seja. Não criam sequer galinhas. Caçavam com uns arcos e flechas primitivos que, com a sua extraordinária habilidade em se deslocar silenciosamente como felinos, quase encostavam ao ouvido das potenciais vítimas, sempre animais de pequeno porte que não resistiriam muito tempo ao veneno com que são untadas as flechas de madeira rija e pontas afiadas. Depois era só segui-la com a paciência e a resistência que só eles possuem. Corriam numa espécie de "trote" com passos curtos e rápidos, durante quilómetros sem aparente fadiga. Servindo-nos de guia no rasto de caça, corriam à frente do jeep e, mesmo sem parar apanhavam um pouco de terra ou folhagem, que atiravam ao ar e,... “viam“ (?) a direcção do vento.
Porque os Buchimanes são colectores, apenas isso. Não plantam o quer que seja. Não criam sequer galinhas. Caçavam com uns arcos e flechas primitivos que, com a sua extraordinária habilidade em se deslocar silenciosamente como felinos, quase encostavam ao ouvido das potenciais vítimas, sempre animais de pequeno porte que não resistiriam muito tempo ao veneno com que são untadas as flechas de madeira rija e pontas afiadas. Depois era só segui-la com a paciência e a resistência que só eles possuem. Corriam numa espécie de "trote" com passos curtos e rápidos, durante quilómetros sem aparente fadiga. Servindo-nos de guia no rasto de caça, corriam à frente do jeep e, mesmo sem parar apanhavam um pouco de terra ou folhagem, que atiravam ao ar e,... “viam“ (?) a direcção do vento.
Acampámos durante alguns dias perto da sua “aldeia”. Como
nenhum falava português, procurámos utilizar uma linguagem gestual em que eles
eram expressivos, e nós uns nabos. Também gravámos as "nossas conversas"
que depois fazíamos ouvir . Isso era para eles motivo de grande surpresa e ao
mesmo tempo de divertimento. Até porque passada a agitação da surpresa,
reconheciam .as vozes uns dos outros. O único instrumento musical que me
lembro de ver, era uma cabaça com uma calote cortada que, enquanto uns batiam
palmas, o "músico" encostava ao corpo para servir de caixa de
ressonância, enquanto fazia vibrar a corda do arco.
Outro contacto tivemos com Buchimanes, mas em circunstâncias
completamente diferentes. Sabíamos da existência da Missão, da Chamavera
dirigida por padres alemães que se dedicavam a ensinar crianças Buchimanes a
cultivar a terra, a cuidar de criação, e enfim dar-lhes hábitos de trabalho.
Durante o curto tempo que lá passámos pudemos ver e registar pela imagem, os
pequenos buchimanes trabalhando na horta tranquilamente e, pensámos nós
satisfeitos, ou...resignados. Tudo isto era bastante positivo, embora não
tivéssemos ficado a saber dos resultados alcançados, ou não. De qualquer
forma, independentemente do êxito possível, tudo o resto era negativo. Os
Missionários eram porquíssimos consigo próprios e com a higiene da casa. Outra
coisa que nos chocou foi que nenhum falava português, mas um deles falava
"buchimane" com clics e tudo.
Já me não recordo como nos entendemos, se em francês se em inglês.
E agora mais um pequeno desvio: anos antes fui encontrar no interior da Xicuma, depois de vários quilómetros a corta-mato, uma Fazenda de Sisal de um casal de alemães, já velhos, que não falavam uma palavra de português, e entendiam-se com um criado em alemão e em umbundo.
Voltando à narrativa no ponto em que a deixei: ficámos na Missão dois dias, mas só uma noite. Apesar de nos terem oferecido jantar, nós que já tínhamos visto, e cheirado a cozinha, declinámos o convite e oferecemos-lhes do nosso banquete de enlatados. Pelo menos era limpo. Aproveitámos a ocasião para perguntar pela milésima vez pelo Arroz Doce do Raul. Mais uma vez o prometeu para breve. E nós com imensa vontade de acreditar.
Na manhã seguinte, a da ”Libertação” não podemos recusar um púcaro de uma coisa que de café só tinha a cor e a temperatura, mas fomos obrigados a beber, procurando não identificar a mais que suspeita origem do cheiro. À chegada oferecêramos três galinhas do mato que havíamos caçado. Ficaram no chão da cozinha, e ainda lá estavam quando na tarde seguinte nos retirámos.
Já me não recordo como nos entendemos, se em francês se em inglês.
E agora mais um pequeno desvio: anos antes fui encontrar no interior da Xicuma, depois de vários quilómetros a corta-mato, uma Fazenda de Sisal de um casal de alemães, já velhos, que não falavam uma palavra de português, e entendiam-se com um criado em alemão e em umbundo.
Voltando à narrativa no ponto em que a deixei: ficámos na Missão dois dias, mas só uma noite. Apesar de nos terem oferecido jantar, nós que já tínhamos visto, e cheirado a cozinha, declinámos o convite e oferecemos-lhes do nosso banquete de enlatados. Pelo menos era limpo. Aproveitámos a ocasião para perguntar pela milésima vez pelo Arroz Doce do Raul. Mais uma vez o prometeu para breve. E nós com imensa vontade de acreditar.
Na manhã seguinte, a da ”Libertação” não podemos recusar um púcaro de uma coisa que de café só tinha a cor e a temperatura, mas fomos obrigados a beber, procurando não identificar a mais que suspeita origem do cheiro. À chegada oferecêramos três galinhas do mato que havíamos caçado. Ficaram no chão da cozinha, e ainda lá estavam quando na tarde seguinte nos retirámos.
Já relatei noutros escritos alguns casos ocorridos em
paralelo com o objectivo primeiro da nossa viagem, por isso me dispenso de
repeti-los. São, entre outros, "Luíana" e "Elefante
Repartido", este último com alguma relação com os buchímanes.
Estou um tanto inseguro quanto à ordem cronológica dos meus
relatos, das minhas recordações. Creio que o que vou contar se passou antes da
ida à Missão "Chama-Béra". Mas pouco interessa, não posso deixar de
escrever sobre caso.
Passámos vários dias numa Coutada de Caça que nos serviu de ponto de apoio de onde irradiávamos para fazer os trabalhos que nos interessavam. O Gerente era o meu Amigo Madeira que eu havia conhecido anos antes em Cabinda.
Estavam à espera de dois caçadores sul-africanos que estavam interessados em búfalos. Chegaram vindo num pequeno avião...directamente da África do Sul. Foi só voar sobre o "arame farpado", aliás instalado pelo próprio Governo sul-africano ao longo da fronteira, para impedir a passagem de gado de cá para lá com receio da transmissão de doenças de que o gado angolano pudesse estar infectado: Peri-pneumonia, Pieira, Brucelose ou outras. Portanto nem passaportes, nem Alfândega, nada.
Este procedimento, aliás era recíproco. Saíram num jeep em busca de búfalos, e nós aproveitámos e fomos no nosso logo colados à traseira deles para não perdermos nenhuma oportunidade. Não muito longe das instalações, encontrámos (sim, uso a primeira pessoa do plural porque nós também íamos à caça...de imagens) um solitário que cometeu a imprudência de deixar aproximar o carro até menos de quarenta metros. O caçador, que trazia armas magníficas atirou, o búfalo deu um mugido terrível, um salto e, ao contrário do que todos nós esperávamos desapareceu dentro da mata. Mas o caçador que era médico, garantia que lhe tinha metido uma bala no coração. Todos abanámos a cabeça delicadamente em sinal de que acreditávamos, mas pensando: "que prosápia, que certeza". Seguimos caminho em busca de novo e mais infeliz búfalo, sempre na orla da mata. Pouco adiante o pisteiro que levávamos, chamou a nossa atenção:"tem búfalo morto ali na mata". Fomos ver e era o mesmo. E a mata também, e nós tínhamo-la contornado sem nos apercebermos. O Caçador mandou o pisteiro abrir o bicho pelos sítios que lhe indicou até às proximidades do coração... e tirou de lá a bala que pouco antes garantira ter lá metido. A nós caíram-nos os queixos.
Voltámos para instalação da Coutada e tínhamos à nossa espera uma triste situação: um garoto dos seus dez, doze anos, que os pais (não buchimanes) haviam trazido nesse dia, tinha sido mordido por uma cobra. Uma perna estava disforme desde a coxa ao pé e purgava abundantemente. Era horrível de ver. O médico para alem de procurar salvar o rapaz dando-lhe uma injecção de soro anti-ofídico e fazer todo o curativo, disse que mesmo assim não garantia a vida do moço porque seria preciso soro específico para aquele veneno, pois este varia de cobra para cobra e esta sabia-se qual era porque os pais não tinham assistido ao acidente. Creio que nem Angola dispunha das variedades de soros correspondentes às espécies de ofídios existentes. E estou certo que são menos, tanto em variedade como em quantidade que no Brasil. E durante os trinta anos em que percorri Angola em todos os sentidos e por várias vezes, que me recorde terei visto uma meia dúzia de cobras incluindo uma jibóia que atropelei mas não parei para ...prestar assistência.
Nós próprios trazíamos no carro o anti-ofídico, que
uma vez injectado teria obrigatoriamente de se procurar um Hospital. Parece
troça dizer isto quando naquela região nunca estaríamos a menos de trezentos ou
quatrocentos quilómetros de um hospital. ´ Então aquele Caçador/Médico, perdão Médico/Caçador oriundo de um País de feroz
"apparteid", levou o garoto no avião para a África do Sul. Semanas
depois voltámos a passar pela Coutada e tivemos a grande alegria de ver a
criança ainda com a perna ligada e muito mais fina...mas vivo. Fora o próprio Médico
que o trouxera de volta. Neste mundo de guerras, traições, egoísmos e lutas
entre raças, religiões diferentes, sabe bem encontrar pessoas capazes de gestos
tão humanos como este.
Passámos vários dias numa Coutada de Caça que nos serviu de ponto de apoio de onde irradiávamos para fazer os trabalhos que nos interessavam. O Gerente era o meu Amigo Madeira que eu havia conhecido anos antes em Cabinda.
Estavam à espera de dois caçadores sul-africanos que estavam interessados em búfalos. Chegaram vindo num pequeno avião...directamente da África do Sul. Foi só voar sobre o "arame farpado", aliás instalado pelo próprio Governo sul-africano ao longo da fronteira, para impedir a passagem de gado de cá para lá com receio da transmissão de doenças de que o gado angolano pudesse estar infectado: Peri-pneumonia, Pieira, Brucelose ou outras. Portanto nem passaportes, nem Alfândega, nada.
Este procedimento, aliás era recíproco. Saíram num jeep em busca de búfalos, e nós aproveitámos e fomos no nosso logo colados à traseira deles para não perdermos nenhuma oportunidade. Não muito longe das instalações, encontrámos (sim, uso a primeira pessoa do plural porque nós também íamos à caça...de imagens) um solitário que cometeu a imprudência de deixar aproximar o carro até menos de quarenta metros. O caçador, que trazia armas magníficas atirou, o búfalo deu um mugido terrível, um salto e, ao contrário do que todos nós esperávamos desapareceu dentro da mata. Mas o caçador que era médico, garantia que lhe tinha metido uma bala no coração. Todos abanámos a cabeça delicadamente em sinal de que acreditávamos, mas pensando: "que prosápia, que certeza". Seguimos caminho em busca de novo e mais infeliz búfalo, sempre na orla da mata. Pouco adiante o pisteiro que levávamos, chamou a nossa atenção:"tem búfalo morto ali na mata". Fomos ver e era o mesmo. E a mata também, e nós tínhamo-la contornado sem nos apercebermos. O Caçador mandou o pisteiro abrir o bicho pelos sítios que lhe indicou até às proximidades do coração... e tirou de lá a bala que pouco antes garantira ter lá metido. A nós caíram-nos os queixos.
Voltámos para instalação da Coutada e tínhamos à nossa espera uma triste situação: um garoto dos seus dez, doze anos, que os pais (não buchimanes) haviam trazido nesse dia, tinha sido mordido por uma cobra. Uma perna estava disforme desde a coxa ao pé e purgava abundantemente. Era horrível de ver. O médico para alem de procurar salvar o rapaz dando-lhe uma injecção de soro anti-ofídico e fazer todo o curativo, disse que mesmo assim não garantia a vida do moço porque seria preciso soro específico para aquele veneno, pois este varia de cobra para cobra e esta sabia-se qual era porque os pais não tinham assistido ao acidente. Creio que nem Angola dispunha das variedades de soros correspondentes às espécies de ofídios existentes. E estou certo que são menos, tanto em variedade como em quantidade que no Brasil. E durante os trinta anos em que percorri Angola em todos os sentidos e por várias vezes, que me recorde terei visto uma meia dúzia de cobras incluindo uma jibóia que atropelei mas não parei para ...prestar assistência.
Coutada do Mucusso - foto de Raul Machado |
Parece que a nossa estadia na Coutada onde fomos tão bem
recebidos, seria propícia ao aparecimento do tal Arroz Doce que cada vez nos
parecia mais virtual. Mas não, o Raul não quis. "Talvez receie o
julgamento de pessoas estranhas", foi o que pensámos. Talvez não estivesse
tão à vontade com a pastelaria, como na cozinha, onde era quase tão bom como na
fotografia .
Resignados, esquecemos o doce. Na última vez em que montámos
acampamento, com a nossa comodíssima tenda onde dispúnhamos de três macas
(chamados burros) que nos proporcionavam sonhos reparadores depois de um dia
extenuante. Tínhamos até lâmpadas amarelas que repeliam os insectos nocturnos. E
também uma cozinha de campismo onde o Raul nos anunciou ir elaborar um jantar
especial. Mas não nos deixou aproximar do seu "laboratório".
Sentámo-nos impacientes à mesa, e ele apareceu com dois pratos de sopa
de...arroz doce!!!
Foi uma alegria: o arroz estava uma delícia e encheu os
nossos pobres estômagos, fartos de comida enlatada. Depois veio o prato de
resistência:... novamente arroz doce. Com risco de indigestão fizemos honras ao
"segundo prato". Já na premonição do que nos iria acontecer, ambos
quisemos prescindir da sobremesa. "Impossível, então eu esmerei-me
justamente numa sobremesa que vocês tanto reclamaram, e agora fazem-me esta
desfeita? Não Senhor.! ”E trouxe três pires do tal arroz doce de que ele também
comeu. Mas nós, até ao regresso a Luanda, nunca mais quisemos sequer ouvir
falar em tal quitute, de que sou grande apreciador, mas que só voltei a provar
meses depois. Alguém dirá quando esta prosa ler - se é que alguém a vai ler:
"então que disparate é este?
Apenas catorze linhas para nos “dar” o arroz doce prometido cento e tantas linhas atrás!?
É verdade. Mas convém não esquecer que o exercício da Leitura é um acto voluntário. Quem não quiser não lê.
Talvez tivessem bastado as primeiras linhas para se decidir num sentido ou noutro. Será por ventura egoísmo, mas quando escrevo sobre factos, acontecimentos coisas do passado, em Angola, é como se as voltasse a viver...Vejo as cores, oiço os ruídos, sinto o vento e a chuva, o Calor e o Frio, e... as PESSOAS! Os bons e os maus momentos e vejo-me a mim próprio, 40 anos ...mais novo!..
João SilvaRxa Xenaider
Apenas catorze linhas para nos “dar” o arroz doce prometido cento e tantas linhas atrás!?
É verdade. Mas convém não esquecer que o exercício da Leitura é um acto voluntário. Quem não quiser não lê.
Talvez tivessem bastado as primeiras linhas para se decidir num sentido ou noutro. Será por ventura egoísmo, mas quando escrevo sobre factos, acontecimentos coisas do passado, em Angola, é como se as voltasse a viver...Vejo as cores, oiço os ruídos, sinto o vento e a chuva, o Calor e o Frio, e... as PESSOAS! Os bons e os maus momentos e vejo-me a mim próprio, 40 anos ...mais novo!..
João SilvaRxa Xenaider