terça-feira, 13 de novembro de 2018

"O ARROZ DOCE"


Quando-Cubango 1967

O Jornalista Emílio Felipe tomou a iniciativa de formar uma equipe constituída por ele próprio. pelo Fotógrafo Raul Machado e por mim, Operador de Cinema. 
O objectivo era a quase ignorada Região do Quando-Cubango no extremo Sudeste de Angola, cerca de 2/3 da superfície de Portugal e confinante com o Iona, "Terras do Fim do Mundo" tão faladas quanto ignoradas. Aliás, alguns anos antes, uma equipa de Geólogos, e Meteorologistas, - seis Sábios - um Fotógrafo, o “Velho” Guimarães, e eu pelo Cinema, voáramos durante dois dias sobre aquela região, numa observação exaustiva fazendo o levantamento por quadrículas a fim de localizar um Vulcão que....não existia. Apenas um "aparelho antigo," no dizer dos Geólogos.
Porém, desta vez iríamos modestamente por terra, e sem levar sábios. Contávamos trazer desta viagem o maior número possível de testemunhos que pela Escrita, pelo Som e pela Imagem, nas vertentes paisagística, animal e, acima de tudo Humana, pudessem contribuir para um melhor conhecimento daquela Região. 
Para levar a bom termo este processo, seria indispensável a concordância e o apoio material do Governador Geral. Nesse sentido o Emílio apresentou ,ao Coronel Rebocho Vaz, a equipe e o Plano de Trabalho. Este tinha como prioritário o contacto com o Povo Buchiman de que toda e gente falava, mas só "conhecia" pelos "estalidos" da linguagem, e ouvindo dizer que era de baixa estatura, tom de pele amarelada e olhos rasgados como os dos orientais. Esperávamos vir a ter experiências enriquecedoras, e tivé-mo-las. Inesquecíveis. 
Povo Buchiman - foto de Raul Machado

Tanto assim, que as estou recordando quatro décadas passadas. Mas ainda é cedo para falar disso. Por agora esperávamos pelo acordo do Governador Geral que não tardou a chegar.
Começou então, a tarefa de equipar um Jeep Land Rover, e a primeira prioridade era um Emissor-Receptor na frequência da Tropa. Coisa vedada a civis. Foi o primeiro obstáculo, que um telefonema do Coronel Rebocho Vaz aos seus Camaradas logo ultrapassou. Ficou porém, como aviso para um outro que nos esperava: a autorização dos Correios. Aqui começou a parte mais desagradável e difícil da nossa missão: ultrapassar a "Burrocracia" personificada num Chefe de Serviços, um desses sujeitos frustrados que, incapazes de enfrentar e vencer as dificuldades próprias, preferem, criá-las aos outros acoitados atrás das suas secretárias, ou da "barricada" dos guichés. Fomos pois informados por ele de que só o Ministério em Lisboa podia dar a autorização que pretendíamos. Objectámos que enquanto esperávamos por ela, chegariam as chuvas que não dependiam do Ministério. A partir daí a nossa missão tornar-se- ia impossível. 
Naquela Região não se poderia andar uma dúzia de quilómetros antes do Cacimbo, Junho... do ano seguinte. Estávamos em fins de Agosto. Mas o homem foi peremptório: "Só Lisboa pode dar a Autorização”. Sugeriu-nos um P 19. Insistimos :"esse aparelho, toda a gente do mato tem, toda a gente ouve incluindo a Unita que já por ali andava". Sem a" autorizaçãosinha", (Óh Eça!) nada feito." 
Foi esta barreira , que teve o condão de nos mostrar que a Burocracia não se combate e derrota frontalmente. Tão pouco ao mesmo nível. Tem de ser por "esmagamento" como na luta Greco-Romana, isto é, de cima para baixo, e sem "fair-play." Este foi um período que me custou escrever, mas não passa de uma constatação. Embora a contra gosto não nos restou outra alternativa. Aprendida a lição, subimos até ao Governador Geral que nos entregou um cartão dirigido informalmente ao "Meu Amigo", para entregarmos ao Director Geral dos Correios, um engenheiro cujo nome não consigo lembrar agora, e que o recebeu, leu, hesitou uns segundos e perguntou: "quem é este senhor que assina Camilo? "Ficámos atónitos, mas conseguimos dizer que era o nome próprio do G,G., Camilo Rebocho Vaz. Supomos que assinando,Camilo teria querido assinalar o carácter não oficial do pedido. O engenheiro, tartamudeando umas palavras: "claro" pois o Senhor"... mandou chamar o perempório Chefe dando-lhe instruções sobre como satisfazer a nossa pretensão com a maior urgência. " Sim Senhor, Senhor Director. Com certeza Senhor Engenheiro". E para nós: "os senhores podem, vir buscar o documento amanhã de manhã".(não terá sido capaz de articular - autorização -) 
Na manhã seguinte, tão cedo que a repartição se encontrava quase deserta, dirigimo-nos para um gabinete de onde vinha o som do matraquear "gaguejante" de uma máquina de escrever. E lá estava ele, o ex-peremptório Chefe escrevendo com dois afanosos dedos a autorização que, poucas horas antes, teria de ser forçosamente pedida a Lisboa.
Podemos finalmente iniciar a viagem,mas antes de partir, demo-nos o luxo de contratar um "cozinheiro", isto é, ele é que disse que era. 
Serpa Pinto

E lá partimos e percorremos os 1050 quilómetros que nos separavam de Serpa Pinto (Menongue) Capital do Cuando Cubango, sem grande história se não pensarmos nos buracos da estrada. E foi já em pleno mato, e numa das poucas noites que passamos debaixo de telha, que mandámos o "cozinheiro" preparar arroz de coelho com o troféu caçado na véspera. O Raul disse-lhe: "olha que eu quero a cabeça". Ao almoço veio o arroz que não estava lá grande coisa mas que quebrava a dieta de enlatados dos dias anteriores. E lá o fomos comendo, e cuspindo os numerosos ossinhos que íamos encontrando. O Raul pediu ao "cozinheiro": "traz-me lá a cabeça" . " Mas a cabeça eu já fiz como o senhor mandou" Horror!... Tínhamos cuspido a cobertura mas comido o recheio. Foi aqui que descobrimos a fraude. Ele era daquela região e por portas travessas, soubera da nossa viagem e...conseguiu boleia para casa. Foi exonerado e o Raul que se jactava de ser bom cozinheiro e de fazer um ARROZ DOCE DIVINO, foi provido do cargo. E como nem tudo é sempre mau nesta vida, perdêramos um "cozinheiro", mas ganhámos uma espécie de guia/intérprete.
Em Serpa Pinto fomos muito bem recebidos pelo Governador do Distrito, Comandante Sousa Machado, pessoa extremamente simpática que nos deu todas as ajudas de que precisámos. Como tivessemos manifestado interesse em ir até Rivungo na margem direita do Cuando, na esquerda ficava a Zâmbia, deu-nos algumas informações úteis mas não nos deixou ir de carro por não achar segura a rota que teríamos de seguir. Assim fomos no avião do Governador. Do que se passou daí para a frente, já fiz relato em "Luíana. "Continuo pois com o "Arroz Doce" do Raul que ele, de vez em quando, esgrimia em defesa das suas opiniões contrárias às nossas. "então se não concordam, não comem Arroz Doce!". 
Iniciamos as nossas operações pela região sabendo que mais dia menos dia encontraríamos os Buchimanes, Mucancalas ou Vassequeles. Este último nome é recusado por eles com nojo, porque significa "merda". Mucancalas não sei de onde vem, e Buchimanes vem da expressão inglesa Bushmen,"homens da mata". Eles dão a si próprios o nome de N'Kun, que quer dizer "homem", o que não deixa de ter a sua lógica.
"Escrevi N'kun conforme soa ao ouvido, mas sem o "clic que esta palavra contém". Ouvira repetidas vezes dizer em Luanda: "eles falam por estalidos". Ora segundo aquilo que observámos e ouvimos, pareceu-nos que os clics são palatais, e não palavras em si mesmo. Antes sons que umas palavras possuem e outras não, sendo que uma palavra com clic terá um significado e sem ele, terá outro. Aqui devo esclarecer que este ponto, não se baseia em qualquer "investigação" que nos transcenderia, mas no que por observação e escuta das gravações, nos pareceu plausível. Mas o curioso é que o clic não precede nem segue a palavra, mas "sai misturado" com ela. Os nossos esforços para os pronunciar. Aliás, dou-me conta agora que "pronunciar" não será a palavra adequada, posto que se trata apenas de um ruído a que chamamos "clic" como o produzido pelo de um pequeno fecho de mola. Não existem sílabas, não há movimento de lábios. Apenas um som estranho saído da boca de uma pessoa.
Este Povo que comerá "bem" num terço do ano e com certeza passa fome nos outros dois, é senhor de uma inesperada alegria, de uma gargalhada fácil e, ouso dizer, de senso de humor. Como ficará, assim o julgo, comprovado pelo seguinte episódio. 
foto de Raul Machado
Pedi um arco e uma flecha que tentei atirar. O material era rudimentar, rígido o arco e forte o esticador feito de pele torcida, ou de uma qualquer planta. Temendo ficar mal visto, lançando a seta a meia dúzia de metros, retesei o arco com quanta força tinha. Mas em vez de puxar por cima do ombro direito, fi-lo em frente da cara. O aparelho rebentou e eu preguei um valente e doloroso murro no nariz. Foi, como espectáculo, um êxito clamoroso. Os risos as piruetas e os gestos mimando a minha desastrada actuação, obrigaram-me a puxar pelo meu mal tratado senso de humor, a esquecer a dor do meu igualmente mal tratado nariz, e a rir com eles, que já deviam estar à espera do acontecimento. 
Em todos os nossos posteriores encontros não deixavam de reviver a cena com mais risos e momices.
Foto de Raul Machado
Mas voltando um pouco atrás: as suas "residências, provisórias, itenerantes"? não têm a menor semelhança com cubatas, sanzalas ou libatas. São digamos, construídas, por falta de termo mais apropriado, com pequenos troncos com pouco mais de um metro, unidos em cima formando um cone, cuja base é maior ou menor conforme o casal "residente" entender. Recobertos de folhas e capim, formavam uma espécie de "iglus." Para as crianças e "pré adolescentes" cavavam (eu não quero dizer cova) mas um quadrado de terreno, com cerca de 40 centímetros de fundo. Fixavam um tronco em cada ângulo e formavam um teto do "material de construção" local: folhas e capim. Este teto tinha de altura apenas o suficiente para que as crianças pudessem rastejar e deitar-se no fundo daquele albergue, cobrindo-se de terra. Tal como os escafandristas que deixam entrar para os fatos de borracha um pouco da água do mar que uma vez aquecida pelo calor do corpo, retribui conservando o corpo quente. Aqui, são as crianças buchimane que, cobrindo-se de terra aquecem-na com o pouco calor dos seus corpos débeis. E a terra Mãe, carinhosa, acalenta o sono dos seus filhos nas frias madrugadas do Cacimbo. Como era o caso. - Acabo de reler o que atrás escrevi e não me sinto muito feliz. Lembra-me - embora não fosse essa a minha ideia - a letra de certas canções de " negregados tempos": . . ." e se à porta ' humildemente' , bate alguém," ( -) . . a alegria da pobreza está nesta grande riqueza de dar e ficar contente," ou o argumento de um senhor engenheiro que tinha com ele a responsabilidade dos Colonatos, em relação ao do Cunene para não se instalar água corrente nas casas: "então não é mais tradicional as mulheres virem à tardinha com as suas cantarinhas a uma fonte buscar a água e conviver... com as vizinhas." 
Portanto não irei mexer no relato, fica mesmo assim. Mas nunca deixaram de me impressionar: estas crianças que se tapavam com terra,. os que se embrulhavam num "cabriquito, tiritando de frio, ou os que dormiam em esteiras nos anexos das casas de seus patrões. Assim vivia o povo : buchimanes, ou "bantus".
Mas este “acampamento” como os que o precederam, mais os que se lhe seguirão , está condenado a uma vida "efémera." Só irá durar o tempo que levarem a esgotar...e a comer tudo o que, num raio previamente determinado, tendo como centro os "iglus," a Natureza lhes der: frutos, raízes, e as lagartas de certas árvores que ao que parece são ricas em proteínas e que depois de torradas sabem a ginguba, segundo o testemunho dos meus dois colegas que se atreveram a prová-las. Eu não tentei sequer. Creio que posso chamar a esta relutância "síndroma do caracol". Talvez me arriscasse se os não tivesse conhecido enquanto vivos, deixando atrás de um corpo rastejante de lesma, um rasto brilhante como os que no Mar seguem os grandes paquetes. Mas este rasto é peganhento, ranhoso, nojento. Também comiam uns pequenos roedores, que aliás são seus concorrentes no consumo de frutos e bagas das mesmas árvores em que vivem. Chamar-lhes-ia "ratos de palmeira," se palmeiras houvesse por aqueles matos. Como não há, são ratos "tout court" e isso corta-me o apetite. 
Porque os Buchimanes são colectores, apenas isso. Não plantam o quer que seja. Não criam sequer galinhas. Caçavam com uns arcos e flechas primitivos que, com a sua extraordinária habilidade em se deslocar silenciosamente como felinos, quase encostavam ao ouvido das potenciais vítimas, sempre animais de pequeno porte que não resistiriam muito tempo ao veneno com que são untadas as flechas de madeira rija e pontas afiadas. Depois era só segui-la com a paciência e a resistência que só eles possuem. Corriam numa espécie de "trote" com passos curtos e rápidos, durante quilómetros sem aparente fadiga. Servindo-nos de guia no rasto de caça, corriam à frente do jeep e, mesmo sem parar apanhavam um pouco de terra ou folhagem, que atiravam ao ar e,... “viam“ (?) a direcção do vento.
Acampámos durante alguns dias perto da sua “aldeia”. Como nenhum falava português, procurámos utilizar uma linguagem gestual em que eles eram expressivos, e nós uns nabos. Também gravámos as "nossas conversas" que depois fazíamos ouvir . Isso era para eles motivo de grande surpresa e ao mesmo tempo de divertimento. Até porque passada a agitação da surpresa, reconheciam .as vozes uns dos outros. O único instrumento musical que me lembro de ver, era uma cabaça com uma calote cortada que, enquanto uns batiam palmas, o "músico" encostava ao corpo para servir de caixa de ressonância, enquanto fazia vibrar a corda do arco.
Outro contacto tivemos com Buchimanes, mas em circunstâncias completamente diferentes. Sabíamos da existência da Missão, da Chamavera dirigida por padres alemães que se dedicavam a ensinar crianças Buchimanes a cultivar a terra, a cuidar de criação, e enfim dar-lhes hábitos de trabalho. Durante o curto tempo que lá passámos pudemos ver e registar pela imagem, os pequenos buchimanes trabalhando na horta tranquilamente e, pensámos nós satisfeitos, ou...resignados. Tudo isto era bastante positivo, embora não tivéssemos ficado a saber dos resultados alcançados, ou não. De qualquer forma, independentemente do êxito possível, tudo o resto era negativo. Os Missionários eram porquíssimos consigo próprios e com a higiene da casa. Outra coisa que nos chocou foi que nenhum falava português, mas um deles falava "buchimane" com clics e tudo. 
Já me não recordo como nos entendemos, se em francês se em inglês. 
E agora mais um pequeno desvio: anos antes fui encontrar no interior da Xicuma, depois de vários quilómetros a corta-mato, uma Fazenda de Sisal de um casal de alemães, já velhos, que não falavam uma palavra de português, e entendiam-se com um criado em alemão e em umbundo. 
Voltando à narrativa no ponto em que a deixei: ficámos na Missão dois dias, mas só uma noite. Apesar de nos terem oferecido jantar, nós que já tínhamos visto, e cheirado a cozinha, declinámos o convite e oferecemos-lhes do nosso banquete de enlatados. Pelo menos era limpo. Aproveitámos a ocasião para perguntar pela milésima vez pelo Arroz Doce do Raul. Mais uma vez o prometeu para breve. E nós com imensa vontade de acreditar. 
Na manhã seguinte, a da ”Libertação” não podemos recusar um púcaro de uma coisa que de café só tinha a cor e a temperatura, mas fomos obrigados a beber, procurando não identificar a mais que suspeita origem do cheiro. À chegada oferecêramos três galinhas do mato que havíamos caçado. Ficaram no chão da cozinha, e ainda lá estavam quando na tarde seguinte nos retirámos.
Já relatei noutros escritos alguns casos ocorridos em paralelo com o objectivo primeiro da nossa viagem, por isso me dispenso de repeti-los. São, entre outros, "Luíana" e "Elefante Repartido", este último com alguma relação com os buchímanes.
Estou um tanto inseguro quanto à ordem cronológica dos meus relatos, das minhas recordações. Creio que o que vou contar se passou antes da ida à Missão "Chama-Béra". Mas pouco interessa, não posso deixar de escrever sobre caso. 
Passámos vários dias numa Coutada de Caça que nos serviu de ponto de apoio de onde irradiávamos para fazer os trabalhos que nos interessavam. O Gerente era o meu Amigo Madeira que eu havia conhecido anos antes em Cabinda. 
Estavam à espera de dois caçadores sul-africanos que estavam interessados em búfalos. Chegaram vindo num pequeno avião...directamente da África do Sul. Foi só voar sobre o "arame farpado", aliás instalado pelo próprio Governo sul-africano ao longo da fronteira, para impedir a passagem de gado de cá para lá com receio da transmissão de doenças de que o gado angolano pudesse estar infectado: Peri-pneumonia, Pieira, Brucelose ou outras. Portanto nem passaportes, nem Alfândega, nada. 
Este procedimento, aliás era recíproco. Saíram num jeep em busca de búfalos, e nós aproveitámos e fomos no nosso logo colados à traseira deles para não perdermos nenhuma oportunidade. Não muito longe das instalações, encontrámos (sim, uso a primeira pessoa do plural porque nós também íamos à caça...de imagens) um solitário que cometeu a imprudência de deixar aproximar o carro até menos de quarenta metros. O caçador, que trazia armas magníficas atirou, o búfalo deu um mugido terrível, um salto e, ao contrário do que todos nós esperávamos desapareceu dentro da mata. Mas o caçador que era médico, garantia que lhe tinha metido uma bala no coração. Todos abanámos a cabeça delicadamente em sinal de que acreditávamos, mas pensando: "que prosápia, que certeza". Seguimos caminho em busca de novo e mais infeliz búfalo, sempre na orla da mata. Pouco adiante o pisteiro que levávamos, chamou a nossa atenção:"tem búfalo morto ali na mata". Fomos ver e era o mesmo. E a mata também, e nós tínhamo-la contornado sem nos apercebermos. O Caçador mandou o pisteiro abrir o bicho pelos sítios que lhe indicou até às proximidades do coração... e tirou de lá a bala que pouco antes garantira ter lá metido. A nós caíram-nos os queixos.
Voltámos para instalação da Coutada e tínhamos à nossa espera uma triste situação: um garoto dos seus dez, doze anos, que os pais (não buchimanes) haviam trazido nesse dia, tinha sido mordido por uma cobra. Uma perna estava disforme desde a coxa ao pé e purgava abundantemente. Era horrível de ver. O médico para alem de procurar salvar o rapaz dando-lhe uma injecção de soro anti-ofídico e fazer todo o curativo, disse que mesmo assim não garantia a vida do moço porque seria preciso soro específico para aquele veneno, pois este varia de cobra para cobra e esta sabia-se qual era porque os pais não tinham assistido ao acidente. Creio que nem Angola dispunha das variedades de soros correspondentes às espécies de ofídios existentes. E estou certo que são menos, tanto em variedade como em quantidade que no Brasil. E durante os trinta anos em que percorri Angola em todos os sentidos e por várias vezes, que me recorde terei visto uma meia dúzia de cobras incluindo uma jibóia que atropelei mas não parei para ...prestar assistência. 
Coutada do Mucusso - foto de Raul Machado
Nós próprios trazíamos no carro o anti-ofídico, que uma vez injectado teria obrigatoriamente de se procurar um Hospital. Parece troça dizer isto quando naquela região nunca estaríamos a menos de trezentos ou quatrocentos quilómetros de um hospital. ´ Então aquele Caçador/Médico, perdão Médico/Caçador oriundo de um País de feroz "apparteid", levou o garoto no avião para a África do Sul. Semanas depois voltámos a passar pela Coutada e tivemos a grande alegria de ver a criança ainda com a perna ligada e muito mais fina...mas vivo. Fora o próprio Médico que o trouxera de volta. Neste mundo de guerras, traições, egoísmos e lutas entre raças, religiões diferentes, sabe bem encontrar pessoas capazes de gestos tão humanos como este.
Parece que a nossa estadia na Coutada onde fomos tão bem recebidos, seria propícia ao aparecimento do tal Arroz Doce que cada vez nos parecia mais virtual. Mas não, o Raul não quis. "Talvez receie o julgamento de pessoas estranhas", foi o que pensámos. Talvez não estivesse tão à vontade com a pastelaria, como na cozinha, onde era quase tão bom como na fotografia .
Resignados, esquecemos o doce. Na última vez em que montámos acampamento, com a nossa comodíssima tenda onde dispúnhamos de três macas (chamados burros) que nos proporcionavam sonhos reparadores depois de um dia extenuante. Tínhamos até lâmpadas amarelas que repeliam os insectos nocturnos. E também uma cozinha de campismo onde o Raul nos anunciou ir elaborar um jantar especial. Mas não nos deixou aproximar do seu "laboratório". Sentámo-nos impacientes à mesa, e ele apareceu com dois pratos de sopa de...arroz doce!!!
Foi uma alegria: o arroz estava uma delícia e encheu os nossos pobres estômagos, fartos de comida enlatada. Depois veio o prato de resistência:... novamente arroz doce. Com risco de indigestão fizemos honras ao "segundo prato". Já na premonição do que nos iria acontecer, ambos quisemos prescindir da sobremesa. "Impossível, então eu esmerei-me justamente numa sobremesa que vocês tanto reclamaram, e agora fazem-me esta desfeita? Não Senhor.! ”E trouxe três pires do tal arroz doce de que ele também comeu. Mas nós, até ao regresso a Luanda, nunca mais quisemos sequer ouvir falar em tal quitute, de que sou grande apreciador, mas que só voltei a provar meses depois. Alguém dirá quando esta prosa ler - se é que alguém a vai ler: "então que disparate é este? 
Apenas catorze linhas para nos “dar” o arroz doce prometido cento e tantas linhas atrás!? 
É verdade. Mas convém não esquecer que o exercício da Leitura é um acto voluntário. Quem não quiser não lê. 
Talvez tivessem bastado as primeiras linhas para se decidir num sentido ou noutro. Será por ventura egoísmo, mas quando escrevo sobre factos, acontecimentos coisas do passado, em Angola, é como se as voltasse a viver...Vejo as cores, oiço os ruídos, sinto o vento e a chuva, o Calor e o Frio, e... as PESSOAS! Os bons e os maus momentos e vejo-me a mim próprio, 40 anos ...mais novo!..

João SilvaRxa Xenaider

terça-feira, 23 de outubro de 2018

HOTÉIS DO MATO

Teixeira de Sousa - Hotel Sepol

O episódio que vou relatar é tão inacreditável que só alguém que tenha frequentado este tipo de “hotéis” depois ter conhecido hotéis propriamente ditos, e não me refiro a cinco estrelas, mas a simples hotéis, é que se poderá rever numa situação como a deste relato. Tudo começou numa viajem de combóio de Nova Lisboa para Teixeira de Sousa na fronteira Leste de Angola, face à cidade de Dilolo no – ao tempo Congo Belga - .
Chegado a Teixeira de Sousa, dirigi-me ao Hotel e o hoteleiro começou por me perguntar: “é topógrafo?” (viu o tripé da máquina de cinema) – “não sou de cinema” – “ e que fitas é que traz?” (confundira-me com os homens do cinema ambulante que andavam pelo mato a exibir filmes de fraca qualidade) - respondi que não vinha mostrar filmes mas fazê-los.
Mas o homem não desistia: “então quem é que lhe paga?” - “” olhe; a si pago-lhe eu e quanto a mim, não se preocupe”. – “está bem, isto é só a gente a conversar”, mas agora vamos aqui fazer o registo”.
Abriu em cima do balcão um livro enorme como eu já não via há muito tempo nas pensões manhosas da província, estendeu-se sobre o balcão, pegou num lápis de tinta, molhou-o na boca, começou o interrogatório e foi escrevendo laboriosamente. Eu trazia uma credencial de Luanda para o Administrador do Concelho que me iria proporcionar o transporte para Cazombo onde teria de filmar a Leprosaria . Por isso perguntei ao hoteleiro onde era a casa do Sr. Administrador. “Mas hoje é sábado” respondeu-me o homem – “não foi isso que eu perguntei” – “bem sei, mas hoje é sábado e ele não o vai receber” eu já estava pelos cabelos e já com uma certa agressividade na voz , insisti que me dissesse a morada do Administrador, o que finalmente consegui.
Lá fui, falei com o Administrador e acertei a partida para o dia seguinte à tarde. (mas disso falarei mais à frente) Por agora atenhamo-nos ao tema Hotéis que foi isso que aqui me trouxe. Pois voltei ao hotel onde o homem não deixou de inquirir se o Administrador me tinha recebido ou não. Ao jantar entrei na sala que era muito grande e tosca, como eu já esperava e dirigi-me para o fundo onde avistara um lavatório. Reparei que quando entrei as pessoas já sentadas às mesas olharam todas para mim. No fundo não seria de admirar; sempre era um desconhecido, (quem será o gajo?), foi isso que eu pensei. Só depois vi o quanto estava enganado! O lavatório compunha-se de uma armação de madeira com uma bacia de esmalte. Até aí nada que eu não tivesse visto já. O que era inédito é que ao lado do jarro da água não havia um balde para despejar a água utilizada. Não senhor; aquela bacia ostentava o luxo de uma válvula!. Portando, depois de lavar as mão abri a dita válvula e... senti os joelhos todos salpicados de água e reparei que os circunstantes desviavam a vista e continham uns frouxos de riso. Olhei para baixo e vi o realmente inacreditável. Vou procurar descrever: a bacia era daquelas com um tubo de zinco a acabar em bico (em casa de meus pais havia uma assim), só que aquele tubo terminava a meio, não acabando portanto em bico; e em baixo não havia balde nenhum. O que havia era um tubo de chumbo que vindo do chão subia até meio caminho; mas era curto e o engenhoso hoteleiro tinha-lhe enfiado o gargalo de uma garrafa à qual tinha partido o fundo; chegava mais acima mas era pouco, continuava a não chegar.
Por isso o homem cortou o fundo a uma lata de meio quilo de manteiga e enfiou-a na garrafa. Alargou o “funil”, assim quase chegava, isto é, chegava para a água bater nos bordos da lata e esparrinhar para os joelhos do incauto hóspede.
Para gáudio dos comensais que bem precisavam de alguma coisa que os ressarcisse das ementas que lhes serviam. Quando o hoteleiro veio à mesa perguntar-me o que queria beber pedi-lhe uma laranjada gelada. O homem trouxe-me uma garrafa que, gentilmente despejou no copo. Era “groselha” uma coisa que punha nódoas na roupa que nunca mais saiam. “Ò homem eu pedi laranjada, não pedi isto!” – “é a mesma coisa.”. Resignei-me claro, já eram muitas naquela dia; mas não foi a última. Pego no copo para beber o primeiro trago... não estava morna, o morno em África é quente. Chamei o homem e reclamei; “isto não está gelado”.- “Não tenho geladas” disse ele. Mas Você tirou isto da geleira, bolas!” –“ A geleira está avariada“. “Então para que é que tem lá as garrafas? perguntei. “Sempre estão arrumadas” Isto foi o fim; quebrou-se a minha última resistência. Como não consegui comer os bocadões de toucinho que tinha visto tirar de dentro de um porco “crucificado” no pátio por detrás da cozinha e cujos gritos tinha ouvido um bocado antes, levantei-me da mesa e fui-me deitar. 
No dia seguinte parti para Cazombo. Esta viajem merece um relato que farei mais tarde . Por agora fico por aqui.. Afinal não fico nada por aqui: vou incluir a viajem até Cazombo e depois o regresso a Nova Lisboa. 
Pois foi assim: o único transporte possível para aquele dia – Domingo, já era Domingo – seria um camião carregado que sairia ao fim da tarde para Cazombo, (170 quilómetros, se bem me lembro). Porque tinha pressa em fazer aquele trabalho, aceitei sem vacilar e lá me meti no carro; mas ia muito mal instalado porque além do motorista ia outra pessoa corpulenta, e eu ainda por cima ia no meio. Isto era já de noite e como não me conseguia acomodar pedi ao motorista que me deixasse ir para cima da carga, Ele não estava muito de acordo com medo de que eu caísse; mas lá fomos ver a carga que ia coberta com um encerado bem amarrado com cordas. Lá me encaixei numa depressão do encerado e meti as pernas e um braço sob as cordas e o homem lá sossegou. Devo dizer que eu sempre tive muita facilidade em dormir em quaisquer situações e acabei por fazer uma razoável viagem (não choveu!). 
Chegamos de manhã muito cedo ao Rio Zambeze que atravessamos na jangada que se ia virando com o peso do camião, mas lá passamos para o outro lado. 
Em Cazombo o motorista deixou-me à porta do Administrador; o criado disse-me que o Sr. Administrador ainda estava deitado e eu sentei-me na sala à espera dele e... adormeci, Quando acordei já o Administrador Burnay tinha saído deixando-me a dormir, pois percebeu que eu teria viajado toda a noite. Procurei-o na Administração pedi-lhe desculpa pela invasão. Ele era uma pessoa extremamente simpática como tive ocasião de verificar ao longo de vários anos .
Médico Eduardo Ricou dando consulta
aos leprosos na presença da Raínha Nhakatola
Levou-me à Leprosaria e apresentou-me ao Director que era o Dr. Eduardo Ricou (Pai da Tété, a Mulher Palhaço dos tempos actuais). Também este Dr. Ricou foi muito simpático e proporcionou-me bom apoio para a conclusão do trabalho, que embora doloroso de ver correu bem, e dois ou três dias depois o Administrador mandou um Chefe de Posto levar-me de volta a Teixeira de Sousa. 
Como a estrada por onde eu tinha vindo era péssima (todas em Angola o eram naquele tempo), anos 50, o Chefe de Posto levou-me pelo Congo Belga até Dilolo onde jantamos e atravessamos novamente a fronteira para Teixeira de Sousa. Refiro este trajecto por Dilolo porque tem importância para o que virá a seguir. Lá fui parar ao mesmo “hotel” (não havia outro).
E no dia seguinte por volta do meio dia tinha comboio para Nova Lisboa. Como tinha bilhete de ida e volta descuidei-me com o dinheiro e cheguei à triste conclusão que estava nas lonas. É que a viajem demorava aquela tarde toda, a noite toda e só chegaríamos a Nova Lisboa por volta das 8:00 horas da noite do dia seguinte. Mas o dinheiro era pouco e eu tinha duas opções, 1ª: comprava cama, falhava o jantar daquele dia, dispensava o pequeno almoço do dia seguinte mas almoçava, ou, 2ª opção: - jantava naquele dia e almoçava no dia seguinte mas não comprava cama e dormia em más condições depois da viajem no camião e das dormidas no tal “hotel” que também não se recomendavam - Pensei então: não janto, deito-me cedo e como costumo dormir bem, levanto-me o mais tarde possível, almoço e depois janto já em Nova Lisboa. E assim optei pela primeira hipótese. Mas, assim que tomei esta decisão e entrei no comboio comecei logo a sentir fome. Peguei num livro policial que comprara em Teixeira de Sousa (imprudência causadora do dilema presente), tentei ler mas só sentia era o estômago a reclamar. Aliás antes de tempo pois o meio da tarde não era para tanta aflição visto que tinha almoçado. Procurei várias maneiras para me distrair; mas como ia só no compartimento não tinha grandes chances. Então, para matar o tempo resolvi fazer a barba, não a tinha feito de manhã, coisa rara, mesmo no mato. Abro a mala para tirar a gilete e que vêem os meus olhos extasiados: UMA ENORME BARRA DE CHOCOLATE que tinha comprado em Dilolo para levar aos meus filhos que me esperavam em Nova Lisboa. Lembram-se de eu dizer que era importante falar no percurso pelo Congo Belga? Pois aqui está a justificação. “Coitadinhas das crianças, disse o meu coração”. “ É pá, reclamou o meu estômago; então e eu!?” e a minha cabeça botou sentença:” em Nova Lisboa compras outra”. “Não é a mesma coisa, isto seria uma lembrança da viajem: vêem como o paisinho não se esqueceu de Vocês”! Entretanto já tinha desembrulhado o chocolate e dado uma dentadinha. E lá fui tenteando a fome, que curiosamente, desde o aparecimento do chocolate, já não apertava tanto. E depois ele era tão GRANDE!!! que ao fim e ao cabo tudo se resolveu a contento do estômago, do meu coração, da minha consciência e da alegria das crianças. A Nova Lisboa ainda chegou mais de metade, e como lhes contei o sucedido até se riram e ainda repartiram comigo.


João Silva
Rxa Xenaider

terça-feira, 7 de agosto de 2018

ÉRAMOS MIÚDOS DE CALÇÕES SUJOS...


...e às vezes ouvíamos estas músicas lá em casa. 
Ainda não nos puxavam o pé porque nessa altura o pião que atirávamos e o rodopiar dele na calçada persistiam em enfeitiçar-nos os olhos.

Achávamos estranho a excitação que tomava conta dos nossos irmãos mais velhos, dos amigos e amigas deles, de alguns nossos vizinhos lá no bairro, porque se punham a bambolear todos chegadinhos quando o gira-discos espalhava estes sons melosos na
garagem, não percebíamos a urgência dos olhares, os códigos dos gestos e das aproximações nervosas, ainda eram outras as ânsias que nos absorviam, o Peugeot azul lindo da Dinky Toys que aquele meu amigo já tinha e eu ainda não, voar rua abaixo no carrinho de rodas de esferas que talvez me deixassem usar, conseguir que a mãe me desse 15 tostões para comprar aquele abafador olho-de-boi vermelho escuro (parecia-me que todos os outros miúdos já tinham abafadores enormes e espantosos, e eu não passava de meia dúzia de berlindes meio riscados e baços)...

Éramos miúdos de calções sujos e não percebíamos por que razão alguém ia a correr pôr a agulha do gira-discos mais uma vez no início da música...

fpb
Junho, 2014