quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

O PIROLITO, o Cachorro do ZÉ MARIA, o 47.

Conto dedicado a todos os Ex Combatentes da Guerra do Ultramar.

Olá. Vou apresentar-me:
Sou um cachorro, meio rafeiro, e o que se pode chamar, um cachorro "Sem Abrigo".
Sim, sou um cão "Sem Abrigo".
Eu e o meu dono, o ZE MARIA, o "47", somos ambos "Sem Abrigo". Dormimos num "vão de escada" e podem acreditar que somos felizes. (Eu vou dizer-vos um segredo: Percebo tudo, tudo, o que os humanos dizem).
Mas, como tudo aconteceu?--perguntam vocês.
Eu vou contar, embora abreviando a historia da minha vida.
Tive uns donos que me estimavam, que viviam numa vivenda super luxuosa, grande, e onde também havia 3 crianças que eram os meus companheiros de brincadeiras. Os seus pais, e meus donos, tinham nome fino: Condes Sá de Vilhena, Valdemor e Saragoça Stein. Só que, quando cresci mais, num certo dia puseram-me fora de casa.Tudo porque eu corria pela casa, saltava atrás das bolas e dos meus 3 amigos e porque fiz xixi numa das salas. É que eu não sabia que não podia fazer tudo aquilo...
Ralharam muito comigo e fui acorrentado no quintal com uma corrente curta, e pesada. Passaram a ralhar sempre comigo, por tudo e por nada o que me entristecia imenso.
Até que um dia colocaram-me no carro.
Pensei: Vamos todos passear.
Andámos vários Kms, muito tempo, até que pararam o automóvel no meio de uma estrada muito comprida, longe de tudo, só com um pinhal em redor. Abriram a porta do carro e atiraram-me para a estrada, fugindo com o carro a alta velocidade.
Fiquei espantado! Ainda pensei: "Seria uma brincadeira nova? "
Corri atrás do carro o mais que pude, até não poder mais de tão cansado, vendo os meus 3 amiguinhos a gritar por mim e a chorarem, com as carinhas deles encostadas ao vidro traseiro do automóvel. Mas o carro desapareceu lá no fim e nunca mais o vi.
Esperei por eles vários dias, no pinhal ao lado daquela estrada comprida, mas, cheio de fome, frio, sede e medo, tive que me pôr ao caminho, por carreiros, estradas, mais carreiros, aldeias, onde fui escorraçado, espancado e até atropelado.
Muito ferido nas patas traseiras, andei, como pude, dias e noites, arrastando-me, até que cheguei , muito fraco, esquelético e faminto, a uma grande cidade cheia de gente mas que também me afastavam deles.
No fim de um certo dia, dia de chuva forte, todo molhadinho e a tremer, encostei-me a um canto de uma casa velha à espera da morte, desejando que ela viesse buscar-me depressa.
Nada me prendia à vida. Viver, para quê??
Mas... ouvi assobiar. Alguém a chamar por mim, com uma voz rouca:
"É ! cãozito!! Não tenhas medo, não fujas. Que foi que te fizeram, meu amigo?"
Olhei. Era um senhor de idade, cabelos e barba brancas, com ar de abandonado, como eu.
Ele, novamente:
"Olha como tu estás!! Quem te fez isto?! Quem te tratou assim, tão mal, amiguinho ?! Vou tratar de ti, não tenhas medo."
Devagar, aproximou-se e pegou-me ternamente ao colo. Levou-me para o vão de umas escadas velhas, e embrulhou-me no seu sobretudo cinzento.
Só ali o fixei melhor. Nos olhos. E, naquele momento, nasceu logo uma forte amizade entre nós.
Tratou de mim varias semanas, curou-me e conseguiu que eu andasse de novo, sem arrastar as minhas patas traseiras.
Passámos a andar juntos. A dormir juntos. A percorrer juntos toda a cidade.
E... um dia deu-me um nome:
PIROLITO.
E PIROLITO fiquei, tendo eu esquecido o meu outro nome, Boby.
Este meu novo e grande amigo e dono era muito engraçado. Dizia-me ser ZÉ MARIA, o 47.
Às vezes cantava muito alto, cantigas que eu desconhecia: "Heróis do Mar, Nobre Povo Nação Valente e Imortal ", outras vezes cantava: "Soldado Que Vais Para a Guerra", outras era: "Angola é Nossa, Gritarei" , e muitas outras cantigas.
Por vezes, gritava: "Ataquem!! Eles estão ali no capim!! Atirem!!!! ". Já em outras noites, chora baixinho, encolhido na sua manta velha, naquele " vão de escadas" onde ambos dormimos.
O 47 fala muito de uma terra muito longe e que se chama Angola, e de um amor que lá teve e que lá ficou também. Fala também dos nomes de muitos camaradas da tropa que lá morreram em combate, e diz, amargurado, que ninguém quer saber deles nem de nenhum militar que veio de lá, mesmo os que vieram com vida. Nesses momentos, põe-se de repente em pé, muito direito, bate pala e assim fica largos minutos. E chora, chora quando fala nisto.
Muitas vezes o 47 é mal tratado na rua: Chamam-lhe malandro, mandam-no trabalhar, dizem que só prejudica uma tal Segurança Social e outras coisas feias. Alguns até lhe gritam:" Vai mas é ter com a tua Bernadete! "Ele, fica triste, de olhos no chão e sem falar.
Há dias cruzàmo-nos com um senhor de cara bondosa, sorriso de manso, todo vestido de preto. Mas, estranhei: ele tinha ao pescoço uma coleira branca que me fez lembrar a coleira que eu tinha na tal vivenda luxuosa.
Este senhor vestido de preto olhou para nós com desprezo, apressou o passo e fez que não ver a mão estendida do 47.Ouvi então a voz rouca do meu dono murmurar baixinho: "Padres, padres...são todos iguais".
Nessas alturas eu gostava de ter braços como as pessoas para o poder abraçar e poder beijar .Como não tenho, chego-me a ele , lambo-o nas barbas brancas e bebo-lhe as lágrimas que lhe caiem dos olhos.
Há até alguns que lhe roubam as poucas moedas que ele por vezes tem no bolso fundo do sobretudo velho acinzentado.
Há uma pessoa que o trata bem:
Aquela moça bonita, de voz doce, que lhe dá sorrisos, carinho e felicidade.Que lhe oferece um chocolate preto e faz-me festas, dá-me beijinhos e biscoitos saborosos. Aparece de vez em quando e vai embora sempre a chorar e a olhar para trás, para nós. Lá ao fundo, acena sempre e atira-nos beijos com a mão, delicadamente.
Quem será????
O 47 nunca me falou dela mas fica sempre triste quando ela desaparece lá ao fundo, na esquina.

Agora, oiço nas ruas , as pessoas dizerem que vem aí o Natal. Vejo-as passar com embrulhos bonitos, mas ninguém olha para mim nem para o 47.
Não faz mal. Eu olho para ele e ele olha para mim.
Somos felizes assim.
Mesmo que eu não tenha, como alguns cães que eu vejo, um fato quente vestido contra o frio.
Eu tenho o melhor fato do Mundo inteiro: O amor do ZE MARIA, o 47, e o seu sobretudo cinzento.
(Esta dele ser o 47 é que nunca percebi muito bem. Mas ainda um dia hei-de saber).

Bem, agora vou andar mais um bocado por aí, com o meu dono amigo, o ZE MARIA, o 47.
Temos todas as ruas da cidade por percorrer e temos que as ver todas, todas, antes de chegar a tal noite de Natal. Que, dizem que é de amor.
É ?
Não sei.Adeus.E...Bom e Feliz Natal !!!!!


Conto inédito de : AHV ESGAIO FAP551/67
Comissão em Angola: 69/71
Conto de minha autoria, dedicado a todos os Ex Combatentes da Guerra do Ultramar.
Conto a editar em livro, um dia.



6 comentários:

  1. é mesmo assim como dizes pirolito,o 47 é abandonado e esquecido como tu por alguem que hoje tem e esta no poder,mas tu pirolito, és melhor do que esses que sao o alguem de que te falei,e sabes porque pirolito? porque tu nunca vais esquecer o 47 como o fazem esses alguem de que te falei, um abraço para ti pirolito, e para todos os 47 deste país

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  2. Gostei muito da tua história.
    Continua a escrever histórias como está porque elas nos dizem muito.
    Parabéns e Boas Festas.

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    1. Tenho mais, já escritas.Tenho, p ex a "Bernardete", o amor do Zé Maria (aqui no "Puto") e tenho outra sobre a sua negra que lá ficou no Ultramar.

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